segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A Filosofa e a visão comum do mundo


Se me disponho a filosofar, é porque busco compreender as coisas e os fatos que me envolvem, a Realidade em que estou imerso. É porque quero saber o que posso saber e como devo ordenar minha visão do Mundo, como situar-me diante do Mundo físico e do Mundo humano e de tudo quanto se oferece à minha experiência. Como entender os discursos dos homens e meu próprio discurso. Como julgar os produtos das artes, das religiões e das ciências.
Mas não posso esquecer todos os outros que filosofaram antes de mim. Num certo sentido, é porque eles filosofaram que me sinto estimulado a retomar o seu empreendimento. O legado cultural da espécie põe à minha disposição uma literatura filosófica extremamente rica e diversificada, de que minha reflexão se vai alimentando. Se me disponho a filosofar, tenho também de situar-me em relação às filosofias e a seus discursos, tenho de considerar os problemas que eles formularam e as soluções que para eles propuseram.
Nesse contato com as filosofias e no seu estudo, faço a experiência de sua irredutível pluralidade, de seu conflito permanente e de sua recíproca incompatibilidade. A consciência desse conflito e dessa incompatibilidade exprime-se em seus discursos, aliás, de modo quase sempre bastante explícito. Porque cada filosofia emerge no tempo histórico, opondo-se polemicamente às outras filosofias, que ela rejeita e anatematiza no mesmo movimento pelo qual se instaura. Contra os outros discursos filosóficos, cada novo discurso vem propor-se como o “bom” discurso. Qualquer que seja o seu projeto, o de “editar” o Real ou o de propor uma crítica do conhecimento, o de orientar a práxis humana ou o de efetuar uma análise “terapêutica” da linguagem, pertence, em geral, a todo discurso filosófico o dever impor-se como a única maneira correta de filosofar. Sob esse prisma, vale dizer que cada um deles de algum modo se propõe como a solução adequada do conflito das filosofias. Por isso mesmo, obriga-se a argumentar em causa própria, no afã de legitimar-se em face dos rivais e de validar a posição privilegiada que para si reivindica na arena filosófica. Pretensão que os outros discursos evidentemente desqualificam, opondo argumentos aos seus argumentos e reacendendo o conflito.
Dispondo-me a filosofar, abordo criticamente os discursos filosóficos. E cedo descubro, então, que nenhum discurso filosófico é demonstrativo, mesmo num sentido fraco da palavra, contrariamente ao que tantos filósofos pretenderam. Dou-me conta de que a retórica é a lógica da filosofia. De que, com um pouco de boa vontade e algum engenho, sempre se pode construir um discurso filosófico bem argumentado a favor de ou contra qualquer ponto de vista. Por outro lado, jamais se persuade o auditório que se tem em mente. Os critérios de autovalidação próprios a cada discurso são sempre discutidos e rejeitados pelos outros. Donde a perpetuação inevitável de conflito das filosofias, num testemunho eloquente de sua indecidibilidade básica. Situação essa que parece condenar inexoravelmente as filosofias, todas e cada uma delas, a uma insuperável precariedade, dificilmente compatível com a natureza mesma dos projetos por que elas costumeiramente se definem. Seus discursos, em última análise, parecem impotentes para efetivamente resolver os problemas que elas inventaram. Os céticos, de há muito, tinham feito sobre isso seu severo diagnóstico.
É natural, então, que eu seja tentado a ver, nos discursos das filosofias, meros jogos de palavras, jogos engenhosos e complicados mas que, uma vez apreendidos e analisados, não posso mais levar a sério. Brinquedos dos filósofos com a linguagem, da linguagem com os filósofos, que ela enfeitiçou. É natural, então, que eu desespere de poder filosofar. Por que daria minha adesão a tal visão do Mundo e não a tal outra? Por que assumiria tal atitude filosófica e não tal outra? Assumir qualquer posição filosófica configuraria uma escolha e uma escolha, em última análise, arbitrária, uma vez que sua justificação não constituiria senão um exercício a mais de habilidade retórica. Não vendo como aderir criticamente a um discurso de outrem, por que me cometeria a editar um discurso original e novo, sabendo-o de antemão condenado, por sua própria natureza, à sorte adversa de que todos os outros compartilham? Por que continuar o empreendimento, por que insistir em buscar soluções filosóficas para os problemas das filosofias?
O ceticismo antigo, apesar de sua crítica acerba aos “dogmatismos”, definiu-se por uma investigação continuada e incansável, caracterizou-se como uma filosofia “zetética”. [1] Entendeu que suas razões valiam tanto quanto as do dogmatismo filosófico e que não lhe era possível validar sua própria argumentação cética. [2] Propôs, por isso, a suspensão do juízo, a epokhé, sobre cada uma das questões examinadas. Para seu propósito de abalar o dogmatismo, isso lhe era suficiente. Mas, por isso mesmo, a lógica interna de seu procedimento condenava-o a prosseguir investigando. Essa atitude me parece pouco natural e nada razoável. Porque o razoável e natural é que a experiência repetida do fracasso engendre o desânimo e o abandono da empresa. Se somos mais do que ratos de laboratório, também dependemos, entretanto, das contingências de reforço: sem nenhuma recompensa, desistimos.
Resta-me, ao que parece, dizer adeus às pretensões filosóficas que em vão alimentei, deixar atrás a filosofia. Optar pelo silêncio da não-filosofia e nele recolher-me. Numa decisão de ordem prática e existencial, que se me impõe como justificada, ainda que não seja, por certo, justificável filosoficamente. Contentar-me-ei em ser apenas um homem entre os outros homens. Deixando-me viver, em sua plenitude, a vida comum dos homens. Redescobrindo e revivendo o homem comum em mim.
Os céticos tinham entendido que sua postura filosófica não implicava a renúncia à vida comum. [3] Pondo em xeque os critérios da pretensa objetividade dogmática tomaram o phainómenon, o que aparece, como critério da ação, segundo os ditames da vida. De fato, porém, seu retorno à vida comum não foi completo, porque não souberam mergulhar em sua não-filosofia. A permanência no empreendimento filosófico, a proposta de investigação continuada atestam que eles ficaram a meio caminho. Os céticos não desesperaram da filosofia. Por isso mesmo, não se permitiram suprimir definitivamente o distanciamento que o dogmatismo instaurou entre a filosofia e a vida. Contestaram as soluções dogmáticas, mas preservaram o seu quadro teórico. Guardaram a nostalgia de um espaço extramundano reservado para a investigação filosófica, em oposição ao espaço banal da vida comum à qual, enquanto homens, se apegavam.
Proponho uma ruptura com a filosofia bem mais radical que a do ceticismo. Um mergulho profundo, definitivo e de alma inteira na vida cotidiana dos homens. Não me limito a suspender meus juízos, mas, em face dos jogos filosóficos, ouso dizer: “Não jogo mais”. [4] Regresso à humanidade comum e assumo integralmente a sua não-filosofia.

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