A noção de ser no mundo difundiu-se
amplamente pelas ciências humanas desde que foi formulada por Martin Heidegger.
Essa noção é aqui revista e caracterizada em seu sentido próprio, de acordo com
a obra de Heidegger, e é também analisada sua utilização na psicopatologia
existencial de L. Binswanger.
A expressão ser no mundo, que fez e
faz escola no conhecimento psicológico e social, é daquelas que facilmente se
prestam à banalização e a empobrecimentos, talvez mesmo pela sua abrangência e
aparente obviedade. De fato, quem se depara com essa expressão, empregada sem
maiores explicações, não suspeita a intricada rede conceituai que motivou a sua
formulação. Além disso, não raro a expressão é utilizada como uma espécie de
palavra mágica, para além da qual nada é preciso explicar. Por tudo isso, em
matéria de psicopatologia, onde a noção de ser no mundo foi largamente
empregada, não deixa de ser conveniente que a mesma seja revisitada em seu
sentido original.
A noção de ser no mundo foi desenvolvida
sistematicamente pelo filósofo alemão Martin Heidegger no tratado Ser e
Tempo (Sein und Zeit), de 1927. Na obra Heidegger se impõe a tarefa de
recolocar a questão do "sentido do ser", que para ele foi esquecida
pela metafísica tradicional. Esse esquecimento se deu em virtude do fato de a
tradição metafísica ter se convertido numa ontologia da substância, aquela que
visualiza o ser em geral a partir da primazia da "coisa", ou, dito de
outro modo, que toma a "coisa", como paradigma de representação para
tudo o que "é". Todavia, essa rejeição da ontologia da coisa que
Heidegger julga necessário levar a cabo, não implica para ele em considerar a
questão do ser como uma questão abstrata; do ponto de vista existencial, a
questão do ser é eminentemente concreta, porque "o ser é sempre o ser de
um ente". Resta, contudo, explicitar o que queremos dizer com a palavra
ser, compreender o fundamento e a possibilidade do ser de alguma coisa. Por
onde se deve, então, começar uma tal investigação? Ora, diz Heidegger, já
possuimos, em nossa vida cotidiana, um certo grau de conhecimento do ser, de
outro modo a questão sequer poderia ser colocada. Por isso, para se alcançar
uma compreensão do ser é preciso, em primeiro lugar, analisar o ser do ente que
coloca a questão do ser, isto é, o ser do homem, o dasein. Assim, toda a
primeira seção da obra é devotado à analítica do dasein (daseinsanalyse),
isto é, à análise da estrutura do ser no mundo, como horizonte fundamental de
onde pode ser abordada a questão do ser em geral.
A reflexão de Heidegger em Sere Tempo,
sua "ontologia fundamental", não apenas se converteu num marco do
pensamento filosófico do século XX, mas causou grande repercussão nas ciências
humanas. No caso da psiquiatria, a daseinsanalyse foi aplicada, por L.
Binswanger e E. Minkowski, entre outros, na compreensão das doenças mentais
enquanto modo alterado de ser no mundo. Segundo a afirmação de Binswanger
(1977: 46), Ser e Tempo "se tomou indispensável, entre outras
coisas, também para a psiquiatria enquanto ciência."
Neste artigo procuraremos, primeiramente, e
nos valendo da recente tradução brasileira de Ser e Tempo (Heidegger,
1995), fazer uma exposição de alguns elementos essenciais da noção de ser no
mundo tal como delineada por Heidegger. Depois, ilustraremos sua aplicação na
psicopatologia, discutindo o seu significado e importância.
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