quarta-feira, 6 de junho de 2012

A Festa de Corpus Christi: Quando surgiu?


A Festa de Corpus Christi surgiu no séc. XIII, na diocese de Liège, na Bélgica, por iniciativa da freira Juliana de Mont Cornillon, (†1258) que recebia visões nas quais o próprio Jesus lhe pedia uma festa litúrgica anual em honra do sacramento da Eucaristia.
Aconteceu, porém, que quando o padre Pedro de Praga, da Boêmia, celebrou uma Missa na cripta de Santa Cristina, em Bolsena, Itália, aconteceu um milagre eucarístico: da hóstia consagrada começaram a cair gotas de sangue sobre o corporal após a consagração. Alguns dizem que isto ocorreu porque o padre teria duvidado da presença real de Cristo na Eucaristia.
O Papa Urbano IV (1262-1264), que residia em Orvieto, cidade próxima de Bolsena, onde vivia São Tomás de Aquino, informado do milagre, então, ordenou ao Bispo Giacomo que levasse as relíquias de Bolsena a Orvieto. Isso foi feito em procissão. Quando o Papa encontrou a Procissão na entrada de Orvieto, teria então pronunciado diante da relíquia eucarística as palavras: “Corpus Christi”.

Em 11 de agosto de 1264 o Papa emitiu a bula "Transiturus de mundo", onde prescreveu que na quinta-feira após a oitava de Pentecostes, fosse oficialmente celebrada a festa em honra do Corpo do Senhor. São Tomás de Aquino foi encarregado pelo Papa para compor o Ofício da celebração. O Papa era um arcediago de Liège e havia conhecido a Beata e percebido a luz sobrenatural que a iluminava e a sinceridade de seus apelos.
Em 1290 foi construída a belíssima Catedral de Orvieto, em pedras pretas e brancas, chamada de "Lírio das Catedrais". Antes disso, em 1247, realizou-se a primeira procissão eucarística pelas ruas de Liège, como festa diocesana, tornando-se depois uma festa litúrgica celebrada em toda a Bélgica, e depois, então, em toda o mundo no séc. XIV, quando o Papa Clemente V confirmou a Bula de Urbano IV, tornando a Festa da Eucaristia um dever canônico mundial.
Em 1317, o Papa João XXII publicou na Constituição Clementina o dever de se levar a Eucaristia em procissão pelas vias públicas. A partir da oficialização, a Festa de Corpus Christi passou a ser celebrada todos os anos na primeira quinta-feira após o domingo da Santíssima Trindade. A celebração normalmente tem início com a missa, seguida pela procissão pelas ruas da cidade, que se encerra com a bênção do Santíssimo.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Cidadania de Papel


 Por Antônio Padilha de Carvalho
Em nosso país não existe cidadania nenhuma. Cidadania é visível, vivida, palpável, sentida. Cidadania não é coisa impressa no papel. Papel aceita tudo! A cidadania nacional é de papel. É só balela!
O melhor e mais confiável indicador do desenvolvimento de um país é o tipo de tratamento que se dá a sua infância e juventude. Os delinqüentes de hoje são aquelas crianças maltratadas de ontem. A nossa sociedade simplesmente colhe o que plantou.
         A máquina estatal corrupta com os seus três poderes, apenas buscam a cada dia locupletarem-se cada vez mais. Banana pro povo! Eles que se arrebentem! Governadores larápios, senadores corruptos, deputados vendilhões, prefeitos e vereadores salteadores da coisa pública, magistrados mercenários. Corja do poder. Corja no poder.
         Todos brasileiros precisam abrir seus olhos para enxergar que, nesse sistema de politicagem suja, cada partido político com os seus representantes visam o poder pelo poder, não existindo compromisso nenhum com a sociedade.
         Esses discursinhos de solidariedade, cidadania, ética e tantas outras palavras bonitas, esvaem-se, por não ter presente a honestidade e hombridade, o respeito ao próximo.
Quem está por cima é insensato, participa do domínio e da exploração daqueles que estão por baixo. Ninguém deseja ser homem público para ajudar a sociedade, empenhar para tirar a nação de suas dificuldades, trabalhar para o bem estar social, mas, verdadeiramente opta por criar políticas de grupo, procurando dessa forma obter proveitos e vantagens particulares.
A Nação Brasileira está cansada de tantas aberrações e absurdos. São mentiras, manobras e jeitinhos criminosos e desonestos pra tudo!
Com conhecimento de causa, bem afirmou o estudioso Ênio Resende: “Acostumados e desencantados com a eternização de um comportamento político de baixo nível, com governos incompetentes, com corrupções impunes em todos os setores, com a progressiva decadência das instituições, com a deteriorização dos costumes, inclusive com a conivência ou  colaboração da mídia que disputa audiência por meio de programas deseducativos e apelativos, os brasileiros foram se deixando dominar pelo mal do conformismo. Atitude comparável à de um doente que vê seu organismo se definhando, mas não se dispõe a reagir. Falta-lhe a descoberta de que o remédio está dentro de si mesmo: a consciência da cidadania, que precisa apenas ser estimulada. No caso, contribui para a cultura do conformismo a crença de grande parte da população em obra do destino ou desígnios  de Deus, quando, na verdade, a obra é dos homens desprovidos de boa vontade e de caráter aqui na terra mesmo. Essa postura debilita ainda mais o já fraco espírito de cidadania, É preocupante ver como tem aumentado a freqüência de expressões do tipo: “o que fazer?”, “se Deus quer assim...”, “deixa pra lá”, “tudo bem”.
O conformismo, a acomodação e a apatia da população chegaram a essa condição doentia porque ela não vê sinais adequados e suficientes de reações e mudanças por parte das lideranças e organizações políticas e civis da sociedade, exceção feita a isoladas e acanhadas iniciativas. Mesmo entidades como sindicatos, com seus movimentos de protestos e reivindicações, não conseguem esconder, em muitos casos, objetivos oportunistas e interesseiros. Fazendo aumentar mais ainda o descrédito do povo.”
O Povo Brasileiro precisa acordar e fazer a sua história. Essa tarefa de construção de uma nova sociedade passa necessariamente pelo imediato despertar do sono profundo, da saída do “deitado eternamente em berço esplêndido” para um sentimento de verdadeira propriedade do país.
Antônio Padilha de Carvalho é professor, escritor, Geógrafo, pós graduado em filosofia e educação.Presidente do IMPDrog – Instituto Mato-grossense de Prevenção às Drogas.

A Filosofia entre a Religião e a Ciência – PARTE II


Mas por que, então, — poderíeis perguntar — perder tempo com problemas tão insolúveis? A isto, poder-se-ia responder como historiador ou como indivíduo que enfrenta o terror da solidão cósmica. A resposta do historiador, tanto quanto me é possível dá-la, aparecerá no decurso desta obra. Desde que o homem se tornou capaz de livre especulação, suas ações, em muitos aspectos importantes, têm dependido de teorias relativas ao mundo e à vida humana, relativas ao bem e ao mal. Isto é tão verdadeiro em nossos dias como em qualquer época anterior. Para compreender uma época ou uma nação, devemos compreender sua filosofia e, para que compreendamos sua filosofia, temos de ser, até certo ponto, filósofos. Há uma relação causal recíproca. As circunstâncias das vidas humanas contribuem muito para determinar a sua filosofia, mas, inversamente, sua filosofia muito contribui para determinar tais circunstâncias. Essa ação mútua, através dos séculos, será o tema das páginas seguintes.
Há, todavia, uma resposta mais pessoal. A ciência diz-nos o que podemos saber, mas o que podemos saber é muito pouco e, se esquecemos quanto nos é impossível saber, tornamo-nos insensíveis a muitas coisas sumamente importantes. A teologia, por outro lado, nos induz à crença dogmática de que temos conhecimento de coisas que, na realidade, ignoramos e, por isso, gera uma espécie de insolência impertinente com respeito ao universo. A incerteza, na presença de grandes esperanças e receios, é dolorosa, mas temos de suportá-la, se quisermos viver sem o apoio de confortadores contos de fadas. Não devemos também esquecer as questões suscitadas pela filosofia, ou persuadir-nos de que encontramos, para as mesmas, respostas indubitáveis. Ensinar a viver sem essa segurança e sem que se fique, não obstante, paralisado pela hesitação, é talvez a coisa principal que a filosofia, em nossa época, pode proporcionar àqueles que a estudam.
A filosofia, ao contrário do que ocorreu com a teologia, surgiu, na Grécia, no século VI antes de Cristo. Depois de seguir o seu curso na antiguidade, foi de novo submersa pela teologia quando surgiu o Cristianismo e Roma se desmoronou. Seu segundo período importante, do século VI ao século XIV, foi dominado pela Igreja Católica, com exceção de alguns poucos e grandes rebeldes, como, por exemplo, o imperador Frederico II (1195-1250). Este período terminou com as perturbações que culminaram na Reforma. O terceiro período, desde o século XVII até hoje, é dominado, mais do que os períodos que o precederam, pela ciência. As crenças religiosas tradicionais mantêm sua importância, mas se sente a necessidade de que sejam justificadas, sendo modificadas sempre que a ciência torna imperativo tal passo. Poucos filósofos deste período são ortodoxos do ponto de vista católico, e o Estado secular adquire mais importância em suas especulações do que a Igreja.
A coesão social e a liberdade individual, como a religião e a ciência, acham-se num estado de conflito ou difícil compromisso durante todo este período. Na Grécia, a coesão social era assegurada pela lealdade à Cidade-Estado; o próprio Aristóteles — embora, em sua época, Alexandre estivesse tornando obsoleta a Cidade-Estado — não conseguia ver mérito algum em qualquer outro tipo de comunidade. Variava grandemente o grau em que a liberdade individual cedia ante seus deveres para com a Cidade. Em Esparta, o indivíduo tinha tão pouca liberdade como na Alemanha ou na Rússia modernas; em Atenas, apesar de perseguições ocasionais, os cidadãos desfrutaram, em seu melhor período, de extraordinária liberdade quanto a restrições impostas pelo Estado. O pensamento grego, até Aristóteles, é dominado por uma devoção religiosa e patriótica à Cidade; seus sistemas éticos são adaptados às vidas dos cidadãos e contêm grande elemento político. Quando os gregos se submeteram, primeiro aos macedônios e, depois, aos romanos, as concepções válidas em seus dias de independência não eram mais aplicáveis. Isto produziu, por um lado, uma perda de vigor, devido ao rompimento com as tradições e, por outro lado, uma ética mais individual e menos social. Os estoicos consideravam a vida virtuosa mais como uma relação da alma com Deus do que como uma relação do cidadão com o Estado. Prepararam, dessa forma, o caminho para o Cristianismo, que, como o estoicismo, era, originalmente, apolítico, já que, durante os seus três primeiros séculos, seus adeptos não tinham influência no governo. A coesão social, durante os seis séculos e meio que vão de Alexandre a Constantino, foi assegurada, não pela filosofia nem pelas antigas fidelidades, mas pela força — primeiro a força dos exércitos e, depois, a da administração civil. Os exércitos romanos, as estradas romanas, a lei romana e os funcionários romanos, primeiro criaram e depois preservaram um poderoso Estado centralizado. Nada se pode atribuir à filosofia romana, já que esta não existia.
Durante esse longo período, as ideias gregas herdadas da época da liberdade sofreram um processo gradual de transformação. Algumas das velhas ideias, principalmente aquelas que deveríamos encarar como especificamente religiosas, adquiriram uma importância relativa; outras, mais racionalistas, foram abandonadas, pois não mais se ajustavam ao espírito da época. Desse modo, os pagãos posteriores foram se adaptando à tradição grega, até esta poder incorporar-se na doutrina cristã.

Artigo: A ANGÚSTIA, O NADA E A MORTE EM HEIDEGGER- PARTE II


Desse modo, logo no começo de Ser e tempo, Heidegger afirma que a questão do ser não se coloca senão ao ente privilegiado que é capaz de questionar o ser, que possui uma compreensão do ser [Seinsverständnis]. Este ente é o homem, que Heidegger chama de “ser-aí” [Dasein], o homem enquanto um ente que existe imediatamente em um mundo (1989a, §4). Por meio do termo Dasein, que define o ponto de partida da analítica existencial, Heidegger pretende ultrapassar a separação entre sujeito e objeto, que ele considera uma herança prejudicial da filosofia moderna na compreensão do que seja o homem. Dasein é o homem na medida em que existe na existência cotidiana, do dia-a-dia, junto com os outros homens e em seus afazeres e preocupações. Para investigar o Dasein enquanto possui sempre uma compreensão de ser impõe-se uma analítica existencial, que tem como tarefa explorar a conexão das estruturas que definem a existência do Dasein, a saber, os existenciais.
O método da analítica existencial é buscado tanto na fenomenologia quanto na hermenêutica, de modo que se designa de método fenomenológico- hermenêutico (idem, §7): parte-se da própria manifestação do Dasein ele mesmo em sua existência que, por sua vez, tem de ser interpretada de dentro para fora em suas principais estruturas ontológicas que a definem e que permitem a colocação da questão do ser. Dito em outras palavras, a questão do ser do Dasein é investigada tanto segundo a máxima da fenomenologia, do “ir às coisas elas mesmas” [zu den Sachen selbst], quanto com a máxima da “interpretação no horizonte da compreensão”, proposta pela hermenêutica. Nesta investigação, um pressuposto fundamental da analítica existencial é de que a existência que se manifesta ao Dasein é sempre primeiramente concernente ao Dasein mesmo, à sua compreensão que se coloca para o ser-aí antes de qualquer teorização ou horizonte teórico, num nível pré-ontológico. Heidegger nega a idéia de que em filosofia é preciso estabelecer um princípio primeiro como a base inabalável e segura de um sistema filosófico. Inversamente, está empenhado em examinar como se dá a primeira e mais original compreensão do homem em sua existência mesma, antes de se colocar o momento teórico e da consciência: a teoria sempre chega tarde, apenas se coloca num momento posterior do que se revelou ou abriu ao homem na existência. A analítica Trans/Form/Ação, São Paulo, 26(1): 97-113, 2003 99 existencial tem de partir, portanto, do ser que é sempre [Jemeinigkeit] do Dasein, que apenas pertence a ele, e não se acomodar previamente numa teoria que explique de fora o que é a existência humana (por exemplo, a partir de uma antropologia ou de uma investigação empírica do que seja o homem nos diferentes povos). O ponto de partida, portanto, é duplo: tanto o ser-aí quanto a compreensão imediata que ele mesmo tem do ser em sua existência, a qual precede toda a atividade científica e de saber. Ao partir deste terreno, Heidegger é também forçado a recusar como ponto de partida da filosofia a noção de sujeito ou de consciência – tal como ocorre na filosofia moderna, mas ainda em Husserl no conceito de cogito como instância irredutível –, igualmente a concepção de que o homem é um animal racional, bem como o recurso a uma transcendência, por exemplo, à idéia de um ente criado por Deus.Oser-aí é imediatamente o homem e o mundo ao mesmo tempo, em sua realidade finita imediata, entregue ao seu destino. Desse modo, o homem também não é uma mera coisa que reside inerte em um mundo da necessidade; pelo contrário, na medida em que compreende o ser, o homem se coloca no campo da possibilidade, da transcendência e elabora as possibilidades de sua existência.
Quanto ao conceito de existência, Heidegger nos dá uma boa definição dele na Introdução (1949) à preleção Que é metafísica? (1929), em que diz: “A palavra existência designa um modo de ser e, sem dúvida, do ser daquele ente que está aberto para a abertura do ser, na qual se situa, enquanto a sustenta” (1989b, p.59). E logo a seguir, acrescenta: Somente o homem existe. O rochedo é, mas não existe. A árvore é, mas não existe. O anjo é, mas não existe. Deus é, mas não existe. A frase: “o homem existe” de nenhum modo significa apenas que o homem é um ente real, e que todos os entes restantes são irreais e apenas uma aparência ou a representação do homem. A frase o “homem existe” significa: o homem é aquele ente cujo ser é assinalado pela in-sistência ex-sistente no desvelamento do ser a partir do ser e no ser (idem, ibidem).
Entretanto, se partimos da compreensão do ser que define a existência, também deve ser levado em conta que esta existência é na maior parte das vezes existência inautêntica [uneigentlich], ou seja, o homem no cotidiano se mantém numa situação de encobrimento de seu ser, possui uma interpretação errônea de sua própria existência, que se mantém para ele encoberta. Esta tendência de encobrimento é principalmente provocada pela tradição, que no mundo grego colocou pela primeira vez a questão do ser, mas logo em seguida a esqueceu e a afirmou sucessiva- 100 Trans/Form/Ação, São Paulo, 26(1): 97-113, 2003 mente apenas por meio do ser do ente, mas não do ser enquanto tal. Uma das tarefas da analítica existencial enquanto ontologia fundamental é, por isso, a de uma destruição da tradição (1989a, §6; este ponto será explorado por Heidegger em seu pensamento posterior). Ou seja, a tarefa de Heidegger é a de mostrar como no dia-a-dia da existência (do homem do século XX) domina amplamente um esquecimento do ser; daí também decorre o caráter essencialmente negativo de toda a analítica da existência.
A saída “positiva” nunca se põe, pelo contrário, ela emergirá por meio dos existenciais propriamente negativos. O ser-aí, o Dasein, imerso em sua existência, é um ser-no-mundo [In-der-Welt-sein], que se encontra sempre situado num contexto de vivência no mundo, e não está simplesmente lançado num espaço apenas delimitado física ou naturalmente. O conceito de ser-no-mundo é uma estrutura ontológica fundamental do ser-aí, que indica a inseparabilidade do homem e do mundo e igualmente do mundo em relação ao homem.

DESCARTES – AS PAIXÕES DA ALMA


Art. 46. Qual é a razão que impede a alma de dispor inteiramente de suas paixões.
Há uma razão particular que impede a alma de poder alterar ou estancar rapidamente suas paixões, a qual me deu motivo de pôr mais acima, em sua definição, que elas não são apenas causadas, mas também mantidas e fortalecidas por algum movimento particular dos espíritos5 6. Esta razão é que elas são quase todas acompanhadas de alguma emoção que se produz no coração, e, por conseguinte, também em todo o sangue e nos espíritos, de modo que, enquanto essa emoção não cessar, elas continuam presentes em nosso pensamento da mesma maneira que os objetos sensíveis aí permanecem presentes, enquanto agem contra os órgãos de nossos sentidos. E como a alma, tornando-se muito atenta a qualquer outra coisa, pode impedir-se de ouvir um pequeno ruído ou de sentir uma pequena dor, mas não pode impedir-se, do mesmo modo, de ouvir o trovão ou de sentir o fogo que queima a mão, assim pode sobrepujar facilmente as paixões menores, mas não as mais violentas e as mais fortes, a não ser depois que se apaziguou a emoção do sangue e dos espíritos. O máximo que pode fazer a vontade, enquanto essa emoção está em vigor, é não consentir em seus efeitos e reter muitos dos movimentos aos quais ela dispõe o corpo. Por exemplo, se a cólera faz levantar a mão para bater, a vontade pode comumente retê-la; se o medo incita as pessoas a fugir, a vontade pode detê-las, e assim por diante.
Art. 47. Em que consistem os combates que se costuma imaginar entre a parte inferior e a superior da alma.
E tão-somente na repugnância que existe entre os movimentos que o corpo por seus espíritos e a alma por sua vontade tendem a excitar ao mesmo tempo na glândula é que consistem todos os combates que se costuma imaginar entre a parte inferior da alma, denominada sensitiva, e a superior, que é racional, ou então entre os apetites naturais e a vontade; pois não há em nós senão uma alma, e esta alma não tem em si nenhuma diversidade de partes5 7: a mesma que é sensitiva é racional e todos os seus apetites são suas vontades. O erro que se cometeu em fazê-la desempenhar diversas personagens que são comumente contrárias umas às outras provém apenas de não se haver distinguido bem suas funções das do corpo, ao qual unicamente se deve atribuir tudo quanto pode ser advertido em nós que repugne a nossa razão; de modo que não há nisso outro combate exceto que, como a pequena glândula que fica no meio do cérebro pode ser impelida, de um lado, pela alma, e, de outro, pelos espíritos animais, que são apenas corpos, como já disse acima, acontece às vezes que esses dois impulsos sejam contrários e que o mais forte impeça o efeito do outro. Ora, podemos distinguir duas espécies de movimentos excitados pelos espíritos na glândula: uns representam à alma os objetos que movem os sentidos, ou as impressões que se encontram no cérebro e não efetuam qualquer esforço sobre a vontade; outros efetuam algum esforço sobre ela, a saber, os que causam as paixões ou os movimentos dos corpos que as acompanham; e, quanto aos primeiros, embora impeçam amiúde as ações da alma, ou sejam impedidos por ela, todavia, por não serem diretamente contrários, não se verifica neles nenhum combate. Só os observamos entre os últimos e as vontades que lhes repugnam: por exemplo, entre o esforço com que os espíritos impelem a glândula a causar na alma o desejo de alguma coisa e aquele com que a alma a repele, pela vontade que tem de fugir da mesma coisa; e o que faz principalmente surgir esse combate é que, não tendo a vontade o poder de excitar diretamente as paixões, como já foi dito, é obrigada a usar de engenho e aplicar-se a considerar sucessivamente diversas coisas, das quais, se acontece que uma tenha a força de modificar por um momento o curso dos espíritos, pode acontecer que a seguinte não a tenha e que os espíritos retomem o curso logo depois, porque a disposição precedente nos nervos, no coração e no sangue não mudou, o que leva a alma a sentir-se impelida quase ao mesmo tempo a desejar e a não desejar uma mesma coisa; e daí é que se teve ocasião de imaginar nela duas potências que se combatem. Todavia, ainda se pode conceber algum combate, pelo fato de muitas vezes a mesma causa que excita na alma alguma paixão excitar também certos movimentos no corpo, para os quais a alma em nada contribui, e os quais detém ou procura deter tão logo os apercebe, como sentimos quando aquilo que excita o medo faz também com que os espíritos entrem nos músculos que servem para mexer as pernas na fuga, e com que sejam sustados pela vontade que temos de ser audazes.
Art. 48. Em que se conhece a força ou a fraqueza das almas, e qual é o mal das mais fracas5 8.
Ora, é pela sorte desses combates que cada qual pode conhecer a força ou a fraqueza de sua alma; pois aqueles em quem a vontade pode, naturalmente, com maior facilidade, vencer as paixões e sustar os movimentos do corpo que os acompanham têm, sem dúvida, as almas mais fortes; mas há os que não podem comprovar a própria força porque nunca levam a combate a sua vontade juntamente com suas armas próprias, mas apenas com as que lhes fornecem algumas paixões para resistir a algumas outras. O que denomino as armas próprias são juízos firmes e determinados sobre o conhecimento do bem e do mal, consoante os quais ela resolveu conduzir as ações de sua vida; e as almas mais fracas de todas são aquelas cuja vontade não se decide assim a seguir certos juízos, mas se deixa arrastar continuamente pelas paixões presentes, as quais, sendo muitas vezes contrárias umas às outras, a puxam, ora umas, ora outras, para seu partido e, empregando-a para combater contra si mesma, põem a alma no estado mais deplorável possível. Assim, quando o medo representa a morte como um extremo mal, que só pode ser evitado pela fuga, se a ambição, de outro lado, representa a infâmia dessa fuga como um mal pior que a morte, essas duas paixões agitam diversamente a vontade, que, obedecendo ora a uma, ora a outra, se opõe continuamente a si própria, e assim torna a alma escrava e infeliz.