Desse modo, logo no começo de Ser e tempo, Heidegger afirma que a questão
do ser não se coloca senão ao ente privilegiado que é capaz de questionar o
ser, que possui uma compreensão do ser [Seinsverständnis]. Este ente é o homem,
que Heidegger chama de “ser-aí” [Dasein], o homem enquanto um ente que existe
imediatamente em um mundo (1989a, §4). Por meio do termo Dasein, que define o
ponto de partida da analítica existencial, Heidegger pretende ultrapassar a
separação entre sujeito e objeto, que ele considera uma herança prejudicial da
filosofia moderna na compreensão do que seja o homem. Dasein é o homem na medida
em que existe na existência cotidiana, do dia-a-dia, junto com os outros homens
e em seus afazeres e preocupações. Para investigar o Dasein enquanto possui
sempre uma compreensão de ser impõe-se uma analítica existencial, que tem como
tarefa explorar a conexão das estruturas que definem a existência do Dasein, a
saber, os existenciais.
O método da analítica existencial é buscado tanto na fenomenologia quanto
na hermenêutica, de modo que se designa de método fenomenológico- hermenêutico
(idem, §7): parte-se da própria manifestação do Dasein ele mesmo em sua
existência que, por sua vez, tem de ser interpretada de dentro para fora em
suas principais estruturas ontológicas que a definem e que permitem a colocação
da questão do ser. Dito em outras palavras, a questão do ser do Dasein é
investigada tanto segundo a máxima da fenomenologia, do “ir às coisas elas
mesmas” [zu den Sachen selbst], quanto com a máxima da “interpretação no
horizonte da compreensão”, proposta pela hermenêutica. Nesta investigação, um
pressuposto fundamental da analítica existencial é de que a existência que se
manifesta ao Dasein é sempre primeiramente concernente ao Dasein mesmo, à sua
compreensão que se coloca para o ser-aí antes de qualquer teorização ou
horizonte teórico, num nível pré-ontológico. Heidegger nega a idéia de que em
filosofia é preciso estabelecer um princípio primeiro como a base inabalável e
segura de um sistema filosófico. Inversamente, está empenhado em examinar como
se dá a primeira e mais original compreensão do homem em sua existência mesma,
antes de se colocar o momento teórico e da consciência: a teoria sempre chega
tarde, apenas se coloca num momento posterior do que se revelou ou abriu ao
homem na existência. A analítica Trans/Form/Ação, São Paulo, 26(1): 97-113,
2003 99 existencial tem de partir, portanto, do ser que é sempre [Jemeinigkeit]
do Dasein, que apenas pertence a ele, e não se acomodar previamente numa teoria
que explique de fora o que é a existência humana (por exemplo, a partir de uma
antropologia ou de uma investigação empírica do que seja o homem nos diferentes
povos). O ponto de partida, portanto, é duplo: tanto o ser-aí quanto a
compreensão imediata que ele mesmo tem do ser em sua existência, a qual precede
toda a atividade científica e de saber. Ao partir deste terreno, Heidegger é
também forçado a recusar como ponto de partida da filosofia a noção de sujeito
ou de consciência – tal como ocorre na filosofia moderna, mas ainda em Husserl
no conceito de cogito como instância irredutível –, igualmente a concepção de
que o homem é um animal racional, bem como o recurso a uma transcendência, por
exemplo, à idéia de um ente criado por Deus.Oser-aí é imediatamente o homem e o
mundo ao mesmo tempo, em sua realidade finita imediata, entregue ao seu
destino. Desse modo, o homem também não é uma mera coisa que reside inerte em
um mundo da necessidade; pelo contrário, na medida em que compreende o ser, o
homem se coloca no campo da possibilidade, da transcendência e elabora as
possibilidades de sua existência.
Quanto ao conceito de existência, Heidegger nos dá uma boa definição dele
na Introdução (1949) à preleção Que é metafísica? (1929), em que diz: “A
palavra existência designa um modo de ser e, sem dúvida, do ser daquele ente
que está aberto para a abertura do ser, na qual se situa, enquanto a sustenta”
(1989b, p.59). E logo a seguir, acrescenta: Somente o homem existe. O rochedo
é, mas não existe. A árvore é, mas não existe. O anjo é, mas não existe. Deus
é, mas não existe. A frase: “o homem existe” de nenhum modo significa apenas
que o homem é um ente real, e que todos os entes restantes são irreais e apenas
uma aparência ou a representação do homem. A frase o “homem existe” significa:
o homem é aquele ente cujo ser é assinalado pela in-sistência ex-sistente no
desvelamento do ser a partir do ser e no ser (idem, ibidem).
Entretanto, se partimos da compreensão do ser que define a existência, também
deve ser levado em conta que esta existência é na maior parte das vezes
existência inautêntica [uneigentlich], ou seja, o homem no cotidiano se mantém
numa situação de encobrimento de seu ser, possui uma interpretação errônea de
sua própria existência, que se mantém para ele encoberta. Esta tendência de
encobrimento é principalmente provocada pela tradição, que no mundo grego
colocou pela primeira vez a questão do ser, mas logo em seguida a esqueceu e a
afirmou sucessiva- 100 Trans/Form/Ação, São Paulo, 26(1): 97-113, 2003 mente
apenas por meio do ser do ente, mas não do ser enquanto tal. Uma das tarefas da
analítica existencial enquanto ontologia fundamental é, por isso, a de uma
destruição da tradição (1989a, §6; este ponto será explorado por Heidegger em
seu pensamento posterior). Ou seja, a tarefa de Heidegger é a de mostrar como
no dia-a-dia da existência (do homem do século XX) domina amplamente um
esquecimento do ser; daí também decorre o caráter essencialmente negativo de
toda a analítica da existência.
A saída “positiva” nunca se põe, pelo contrário, ela emergirá por meio
dos existenciais propriamente negativos. O ser-aí, o Dasein, imerso em sua
existência, é um ser-no-mundo [In-der-Welt-sein], que se encontra sempre
situado num contexto de vivência no mundo, e não está simplesmente lançado num
espaço apenas delimitado física ou naturalmente. O conceito de ser-no-mundo é
uma estrutura ontológica fundamental do ser-aí, que indica a inseparabilidade do
homem e do mundo e igualmente do mundo em relação ao homem.
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