terça-feira, 5 de junho de 2012

Artigo: A ANGÚSTIA, O NADA E A MORTE EM HEIDEGGER- PARTE II


Desse modo, logo no começo de Ser e tempo, Heidegger afirma que a questão do ser não se coloca senão ao ente privilegiado que é capaz de questionar o ser, que possui uma compreensão do ser [Seinsverständnis]. Este ente é o homem, que Heidegger chama de “ser-aí” [Dasein], o homem enquanto um ente que existe imediatamente em um mundo (1989a, §4). Por meio do termo Dasein, que define o ponto de partida da analítica existencial, Heidegger pretende ultrapassar a separação entre sujeito e objeto, que ele considera uma herança prejudicial da filosofia moderna na compreensão do que seja o homem. Dasein é o homem na medida em que existe na existência cotidiana, do dia-a-dia, junto com os outros homens e em seus afazeres e preocupações. Para investigar o Dasein enquanto possui sempre uma compreensão de ser impõe-se uma analítica existencial, que tem como tarefa explorar a conexão das estruturas que definem a existência do Dasein, a saber, os existenciais.
O método da analítica existencial é buscado tanto na fenomenologia quanto na hermenêutica, de modo que se designa de método fenomenológico- hermenêutico (idem, §7): parte-se da própria manifestação do Dasein ele mesmo em sua existência que, por sua vez, tem de ser interpretada de dentro para fora em suas principais estruturas ontológicas que a definem e que permitem a colocação da questão do ser. Dito em outras palavras, a questão do ser do Dasein é investigada tanto segundo a máxima da fenomenologia, do “ir às coisas elas mesmas” [zu den Sachen selbst], quanto com a máxima da “interpretação no horizonte da compreensão”, proposta pela hermenêutica. Nesta investigação, um pressuposto fundamental da analítica existencial é de que a existência que se manifesta ao Dasein é sempre primeiramente concernente ao Dasein mesmo, à sua compreensão que se coloca para o ser-aí antes de qualquer teorização ou horizonte teórico, num nível pré-ontológico. Heidegger nega a idéia de que em filosofia é preciso estabelecer um princípio primeiro como a base inabalável e segura de um sistema filosófico. Inversamente, está empenhado em examinar como se dá a primeira e mais original compreensão do homem em sua existência mesma, antes de se colocar o momento teórico e da consciência: a teoria sempre chega tarde, apenas se coloca num momento posterior do que se revelou ou abriu ao homem na existência. A analítica Trans/Form/Ação, São Paulo, 26(1): 97-113, 2003 99 existencial tem de partir, portanto, do ser que é sempre [Jemeinigkeit] do Dasein, que apenas pertence a ele, e não se acomodar previamente numa teoria que explique de fora o que é a existência humana (por exemplo, a partir de uma antropologia ou de uma investigação empírica do que seja o homem nos diferentes povos). O ponto de partida, portanto, é duplo: tanto o ser-aí quanto a compreensão imediata que ele mesmo tem do ser em sua existência, a qual precede toda a atividade científica e de saber. Ao partir deste terreno, Heidegger é também forçado a recusar como ponto de partida da filosofia a noção de sujeito ou de consciência – tal como ocorre na filosofia moderna, mas ainda em Husserl no conceito de cogito como instância irredutível –, igualmente a concepção de que o homem é um animal racional, bem como o recurso a uma transcendência, por exemplo, à idéia de um ente criado por Deus.Oser-aí é imediatamente o homem e o mundo ao mesmo tempo, em sua realidade finita imediata, entregue ao seu destino. Desse modo, o homem também não é uma mera coisa que reside inerte em um mundo da necessidade; pelo contrário, na medida em que compreende o ser, o homem se coloca no campo da possibilidade, da transcendência e elabora as possibilidades de sua existência.
Quanto ao conceito de existência, Heidegger nos dá uma boa definição dele na Introdução (1949) à preleção Que é metafísica? (1929), em que diz: “A palavra existência designa um modo de ser e, sem dúvida, do ser daquele ente que está aberto para a abertura do ser, na qual se situa, enquanto a sustenta” (1989b, p.59). E logo a seguir, acrescenta: Somente o homem existe. O rochedo é, mas não existe. A árvore é, mas não existe. O anjo é, mas não existe. Deus é, mas não existe. A frase: “o homem existe” de nenhum modo significa apenas que o homem é um ente real, e que todos os entes restantes são irreais e apenas uma aparência ou a representação do homem. A frase o “homem existe” significa: o homem é aquele ente cujo ser é assinalado pela in-sistência ex-sistente no desvelamento do ser a partir do ser e no ser (idem, ibidem).
Entretanto, se partimos da compreensão do ser que define a existência, também deve ser levado em conta que esta existência é na maior parte das vezes existência inautêntica [uneigentlich], ou seja, o homem no cotidiano se mantém numa situação de encobrimento de seu ser, possui uma interpretação errônea de sua própria existência, que se mantém para ele encoberta. Esta tendência de encobrimento é principalmente provocada pela tradição, que no mundo grego colocou pela primeira vez a questão do ser, mas logo em seguida a esqueceu e a afirmou sucessiva- 100 Trans/Form/Ação, São Paulo, 26(1): 97-113, 2003 mente apenas por meio do ser do ente, mas não do ser enquanto tal. Uma das tarefas da analítica existencial enquanto ontologia fundamental é, por isso, a de uma destruição da tradição (1989a, §6; este ponto será explorado por Heidegger em seu pensamento posterior). Ou seja, a tarefa de Heidegger é a de mostrar como no dia-a-dia da existência (do homem do século XX) domina amplamente um esquecimento do ser; daí também decorre o caráter essencialmente negativo de toda a analítica da existência.
A saída “positiva” nunca se põe, pelo contrário, ela emergirá por meio dos existenciais propriamente negativos. O ser-aí, o Dasein, imerso em sua existência, é um ser-no-mundo [In-der-Welt-sein], que se encontra sempre situado num contexto de vivência no mundo, e não está simplesmente lançado num espaço apenas delimitado física ou naturalmente. O conceito de ser-no-mundo é uma estrutura ontológica fundamental do ser-aí, que indica a inseparabilidade do homem e do mundo e igualmente do mundo em relação ao homem.

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