Art. 46. Qual é a razão que impede a
alma de dispor inteiramente de suas paixões.
Há uma razão particular que impede a
alma de poder alterar ou estancar rapidamente suas paixões, a qual me deu
motivo de pôr mais acima, em sua definição, que elas não são apenas causadas,
mas também mantidas e fortalecidas por algum movimento particular dos espíritos5 6.
Esta razão é que elas são quase todas acompanhadas de alguma emoção que se
produz no coração, e, por conseguinte, também em todo o sangue e nos espíritos,
de modo que, enquanto essa emoção não cessar, elas continuam presentes em nosso
pensamento da mesma maneira que os objetos sensíveis aí permanecem presentes,
enquanto agem contra os órgãos de nossos sentidos. E como a alma, tornando-se
muito atenta a qualquer outra coisa, pode impedir-se de ouvir um pequeno ruído
ou de sentir uma pequena dor, mas não pode impedir-se, do mesmo modo, de ouvir
o trovão ou de sentir o fogo que queima a mão, assim pode sobrepujar facilmente
as paixões menores, mas não as mais violentas e as mais fortes, a não ser
depois que se apaziguou a emoção do sangue e dos espíritos. O máximo que pode
fazer a vontade, enquanto essa emoção está em vigor, é não consentir em seus
efeitos e reter muitos dos movimentos aos quais ela dispõe o corpo. Por
exemplo, se a cólera faz levantar a mão para bater, a vontade pode comumente
retê-la; se o medo incita as pessoas a fugir, a vontade pode detê-las, e assim
por diante.
Art. 47. Em que consistem os
combates que se costuma imaginar entre a parte inferior e a superior da alma.
E tão-somente na repugnância que
existe entre os movimentos que o corpo por seus espíritos e a alma por sua
vontade tendem a excitar ao mesmo tempo na glândula é que consistem todos os
combates que se costuma imaginar entre a parte inferior da alma, denominada
sensitiva, e a superior, que é racional, ou então entre os apetites naturais e
a vontade; pois não há em nós senão uma alma, e esta alma não tem em si nenhuma
diversidade de partes5 7: a mesma que é sensitiva é racional e todos os seus
apetites são suas vontades. O erro que se cometeu em fazê-la desempenhar
diversas personagens que são comumente contrárias umas às outras provém apenas
de não se haver distinguido bem suas funções das do corpo, ao qual unicamente
se deve atribuir tudo quanto pode ser advertido em nós que repugne a nossa
razão; de modo que não há nisso outro combate exceto que, como a pequena
glândula que fica no meio do cérebro pode ser impelida, de um lado, pela alma,
e, de outro, pelos espíritos animais, que são apenas corpos, como já disse
acima, acontece às vezes que esses dois impulsos sejam contrários e que o mais
forte impeça o efeito do outro. Ora, podemos distinguir duas espécies de
movimentos excitados pelos espíritos na glândula: uns representam à alma os
objetos que movem os sentidos, ou as impressões que se encontram no cérebro e
não efetuam qualquer esforço sobre a vontade; outros efetuam algum esforço
sobre ela, a saber, os que causam as paixões ou os movimentos dos corpos que as
acompanham; e, quanto aos primeiros, embora impeçam amiúde as ações da alma, ou
sejam impedidos por ela, todavia, por não serem diretamente contrários, não se
verifica neles nenhum combate. Só os observamos entre os últimos e as vontades
que lhes repugnam: por exemplo, entre o esforço com que os espíritos impelem a
glândula a causar na alma o desejo de alguma coisa e aquele com que a alma a
repele, pela vontade que tem de fugir da mesma coisa; e o que faz
principalmente surgir esse combate é que, não tendo a vontade o poder de
excitar diretamente as paixões, como já foi dito, é obrigada a usar de engenho
e aplicar-se a considerar sucessivamente diversas coisas, das quais, se
acontece que uma tenha a força de modificar por um momento o curso dos
espíritos, pode acontecer que a seguinte não a tenha e que os espíritos retomem
o curso logo depois, porque a disposição precedente nos nervos, no coração e no
sangue não mudou, o que leva a alma a sentir-se impelida quase ao mesmo tempo a
desejar e a não desejar uma mesma coisa; e daí é que se teve ocasião de
imaginar nela duas potências que se combatem. Todavia, ainda se pode conceber
algum combate, pelo fato de muitas vezes a mesma causa que excita na alma alguma
paixão excitar também certos movimentos no corpo, para os quais a alma em nada
contribui, e os quais detém ou procura deter tão logo os apercebe, como
sentimos quando aquilo que excita o medo faz também com que os espíritos entrem
nos músculos que servem para mexer as pernas na fuga, e com que sejam sustados
pela vontade que temos de ser audazes.
Art. 48. Em que se conhece a força
ou a fraqueza das almas, e qual é o mal das mais fracas5 8.
Ora, é pela sorte desses combates que
cada qual pode conhecer a força ou a fraqueza de sua alma; pois aqueles em quem
a vontade pode, naturalmente, com maior facilidade, vencer as paixões e sustar
os movimentos do corpo que os acompanham têm, sem dúvida, as almas mais fortes;
mas há os que não podem comprovar a própria força porque nunca levam a combate
a sua vontade juntamente com suas armas próprias, mas apenas com as que lhes
fornecem algumas paixões para resistir a algumas outras. O que denomino as
armas próprias são juízos firmes e determinados sobre o conhecimento do bem e
do mal, consoante os quais ela resolveu conduzir as ações de sua vida; e as
almas mais fracas de todas são aquelas cuja vontade não se decide assim a
seguir certos juízos, mas se deixa arrastar continuamente pelas paixões
presentes, as quais, sendo muitas vezes contrárias umas às outras, a puxam, ora
umas, ora outras, para seu partido e, empregando-a para combater contra si
mesma, põem a alma no estado mais deplorável possível. Assim, quando o medo
representa a morte como um extremo mal, que só pode ser evitado pela fuga, se a
ambição, de outro lado, representa a infâmia dessa fuga como um mal pior que a
morte, essas duas paixões agitam diversamente a vontade, que, obedecendo ora a
uma, ora a outra, se opõe continuamente a si própria, e assim torna a alma
escrava e infeliz.
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