Por: Marco Aurélio WERLE1
Neste artigo pretende-se examinar os conceitos de angústia, de nada e de
morte na analítica da existência de Heidegger, na medida em que estes três
conceitos ocupam um papel estratégico na proposta de Heidegger, em Ser e tempo,
de novamente colocar a questão do sentido do ser, sob o fundo do esquecimento
do ser provocado por toda a metafísica ocidental. Para tanto, o desenvolvimento
do artigo segue o seguinte caminho:
1) inicialmente pretende-se comentar a proposta de Heidegger de uma
filosofia da existência, ressaltando seus principais momentos, para, a seguir,
2) situar, no interior da analítica da existência, os temas da angústia, do
nada e da morte.
Quando se pretende examinar a filosofia de Heidegger como filosofia da
existência, o que significa tratar da primeira filosofia de Heidegger, exposta
principalmente em Ser e tempo, do ano de 1927, logo nos defrontamos com um
problema, pois o filósofo negou em vários momentos que sua preocupação
exclusiva fosse a existência.
Na Carta sobre o Trans/Form/Ação, São Paulo, 26(1): 97-113, 2003 97 1
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP). O
presente texto resulta de uma palestra apresentada na XXVI Jornada de Filosofia
e Teoria da Ciências Humanas – a filosofia da existência e a tragédia moderna,
na UNESP/Marília, em 07/11/2002. humanismo, de 1947, ao se referir ao enunciado
de Sartre de que a existência precede a essência, Heidegger afirma: “O
enunciado principal do existencialismo` não tem nada em comum com aquele
enunciado de Ser e tempo” (1996, p.329). Nesta carta Heidegger inclusive
critica o humanismo, também identificado por Sartre como extensão conceitual do
existencialismo, e afirma que a essência humana tem de ser pensada para além de
uma definição enfática de homem, por ex., como animal racional, já que o que
distingue o homem é a sua relação com o ser e o modo como ele resguarda o ser,
e não na medida em que é definido como um ser dotado de razão. A partir disso,
Heidegger irá dizer neste texto de 1947 que o homem é o pastor do ser e que a
linguagem é a casa do ser.
Certamente Heidegger havia dito em Ser e tempo que a essência é a
existência (1989a, §9), mas com isso ele não pretendia estabelecer uma filosofia
da existência enquanto existencialismo, e sim seu tema era a verdade ou o
sentido do ser que, embora deva ser inicialmente posto em questão no âmbito da
existência humana, a transcende na direção da história do pensamento filosófico
ocidental como um todo2. A primeira questão, portanto, que temos de abordar na
filosofia da existência de Heidegger refere-se à sua especificidade de pensar a
existência indo além da existência.
O problema fundamental da filosofia de Heidegger como um todo não é a
existência, mas a questão do Ser, que ele certamente desenvolve em sua obra
principal Ser e tempo no horizonte da existência, mas em seu pensamento
posterior aborda no campo de uma certa filosofica da história e de uma reflexão
aliada à poesia. O ponto de partida de Heidegger, ou o que coloca o problema do
ser, é o esquecimento do ser, que o filósofo diagnostica em toda a tradição
filosófica ocidental, começando com Platão e se estendendo até Nietzsche. Desde
os gregos o pensamento não teria distinguido adequadamente a diferença entre
ente e ser, entre o que existe simplesmente como uma coisa e entre o que é
enquanto ser. Em outras palavras, trata-se aqui da confusão entre o ôntico
(relativo ao ente) e o ontológico (relativo ao ser), que perfaz a diferença
ontológica. Investigar o ser do ente não é a mesma coisa do que investigar a
maneira como no ente se manifesta o ser, que neste caso é o ser enquanto tal. É
certo que o ser só se dá no ente, mas isso não significa que pode ser reduzido
ao ser do ente. O tema do ser, com o qual começou o pensamento ocidental com 98
Trans/Form/Ação, São Paulo, 26(1): 97-113, 2003 2 Sobre o existencialismo de
Heidegger, cf. Beaufret (1976, p.67) e também o posfácio de Que é metafísica?
(Heidegger, 1989b). os pré-socráticos, portanto, tem de ser novamente levantado
a partir de uma ontologia fundamental, e isto tomando como fio condutor o único
ente que tem a possibilidade de questionar o ser, que é o homem. Pois o homem é
dentre todos os entes o único que compreende o ser, o sentido do fato de que
ele é, de que existe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário