segunda-feira, 4 de junho de 2012

DESCARTES – AS PAIXÕES DA ALMA


Art. 41. Qual é o poder da alma com respeito ao corpo.
Mas a vontade é, por natureza, de tal modo livre que nunca pode ser compelida; e, das duas espécies de pensamentos que distingui na alma, das quais uns são suas ações, isto é, suas vontades, e os outros as suas paixões, tomando-se esta palavra em sua significação mais geral, que compreende todas as espécies de percepções, os primeiros estão absolutamente em seu poder e só indiretamente o corpo pode modificá-los, assim como, ao contrário, os últimos dependem absolutamente das ações que os produzem, e a alma só pode modificá-los indiretamente, exceto quando ela própria é sua causa53. E toda a ação da alma consiste em que, simplesmente por querer alguma coisa, leva a pequena glândula, à qual está estreitamente unida, a mover-se da maneira necessária a fim de produzir o efeito que se relaciona com esta vontade.
Art. 42. Como encontramos em nossa memória as coisas de que nos queremos lembrar.
Assim, quando a alma quer lem-brar-se de algo, essa vontade faz com que a glândula, inclinando-se sucessivamente para diversos lados, impila os espíritos para diversos lugares do cérebro, até que encontrem aquele onde estão os traços deixados pelo objeto de que queremos nos lembrar; pois esses traços não são outra coisa senão os poros do cérebro, por onde os espíritos tomaram anteriormente seu curso devido à presença desse objeto, e adquiriram, assim, maior facilidade que os outros, para serem de novo abertos da mesma maneira pelos espíritos que para eles se dirigem; de sorte que tais espíritos, encontrando esses poros, entram neles mais facilmente do que nos outros, excitando, por esse meio, um movimento particular na glândula, que representa à alma o mesmo objeto e lhe faz saber que se trata daquele do qual queria lembrar-se.
Art. 43. Como a alma pode imaginar, estar atenta e mover o corpo.
Assim, quando se quer imaginar algo que nunca se viu, essa vontade tem o poder de levar a glândula a mover-se da maneira necessária para impelir os espíritos aos poros do cérebro por cuja abertura essa coisa pode ser representada; assim, quando se pretende fixar a atenção para considerar por algum tempo um mesmo objeto, tal vontade retém a glândula, durante esse tempo, inclinada para um mesmo lado; assim, enfim, quando se quer andar ou mover o próprio corpo de alguma maneira, essa vontade faz com que a glândula impila os espíritos para os músculos que servem para tal efeito.
Art. 44. Que cada vontade é naturalmente unida a algum movimento da glândula; mas que, por engenho ou por hábito, se pode uni-la a outros.
Todavia, nem sempre é a vontade de provocar em nós algum movimento ou algum outro efeito que pode levar-nos a excitá-lo; mas isso muda conforme a natureza ou o hábito tenham diversamente unido cada movimento da glândula a cada pensamento5 4. Assim, por exemplo, se se quer dispor os olhos para olhar um objeto muito distanciado, essa vontade faz com que a pupila se dilate; e se se quer dispô-los a olhar um objeto muito próximo, essa vontade faz com que a pupila se contraia; mas se se pensa apenas em alargar a pupila, em vão teremos tal vontade, pois nem por isso conseguiremos alargá-la, já que a natureza não uniu o movimento da glândula que serve para impelir os espíritos ao nervo óptico da maneira necessária a dilatar ou a contrair a pupila com a vontade de dilatar ou contrair, mas antes com a de olhar objetos afastados ou próximos. E quando, ao falar, pensamos apenas no sentido do que queremos dizer, isto faz com que mexamos a língua e os lábios muito mais rapidamente e muito melhor do que se pensássemos em mexê-los de todas as formas necessárias para proferir as mesmas palavras, dado que o hábito que adquirimos de aprender a falar fez com que juntássemos a ação da alma, que, por intermédio da glândula, pode mover a língua e os lábios, mais com a significação das palavras que resultam desses movimentos do que com os próprios movimentos.
Art. 45. Qual é o poder da alma com respeito às suas paixões 5 s.
Nossas paixões também não podem ser diretamente excitadas nem suprimidas pela ação de nossa vontade, mas podem sê-lo, indiretamente, pela representação das coisas que costumam estar unidas às paixões que queremos ter, e que são contrárias às que quere mos rejeitar. Assim, para excitarmos em nós a audácia e suprimirmos o medo, não basta ter a vontade de fazê-lo, mas é preciso aplicar-nos a considerar as razões, os objetos ou os exemplos que persuadem de que o perigo não é grande; de que há sempre mais segurança na defesa do que na fuga; de que teremos a glória e a alegria de havermos vencido, ao passo que não podemos esperar da fuga senão o pesar e a vergonha de termos fugido, e coisas semelhantes.

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