terça-feira, 5 de junho de 2012

DESCARTES – AS PAIXÕES DA ALMA


Art. 46. Qual é a razão que impede a alma de dispor inteiramente de suas paixões.
Há uma razão particular que impede a alma de poder alterar ou estancar rapidamente suas paixões, a qual me deu motivo de pôr mais acima, em sua definição, que elas não são apenas causadas, mas também mantidas e fortalecidas por algum movimento particular dos espíritos5 6. Esta razão é que elas são quase todas acompanhadas de alguma emoção que se produz no coração, e, por conseguinte, também em todo o sangue e nos espíritos, de modo que, enquanto essa emoção não cessar, elas continuam presentes em nosso pensamento da mesma maneira que os objetos sensíveis aí permanecem presentes, enquanto agem contra os órgãos de nossos sentidos. E como a alma, tornando-se muito atenta a qualquer outra coisa, pode impedir-se de ouvir um pequeno ruído ou de sentir uma pequena dor, mas não pode impedir-se, do mesmo modo, de ouvir o trovão ou de sentir o fogo que queima a mão, assim pode sobrepujar facilmente as paixões menores, mas não as mais violentas e as mais fortes, a não ser depois que se apaziguou a emoção do sangue e dos espíritos. O máximo que pode fazer a vontade, enquanto essa emoção está em vigor, é não consentir em seus efeitos e reter muitos dos movimentos aos quais ela dispõe o corpo. Por exemplo, se a cólera faz levantar a mão para bater, a vontade pode comumente retê-la; se o medo incita as pessoas a fugir, a vontade pode detê-las, e assim por diante.
Art. 47. Em que consistem os combates que se costuma imaginar entre a parte inferior e a superior da alma.
E tão-somente na repugnância que existe entre os movimentos que o corpo por seus espíritos e a alma por sua vontade tendem a excitar ao mesmo tempo na glândula é que consistem todos os combates que se costuma imaginar entre a parte inferior da alma, denominada sensitiva, e a superior, que é racional, ou então entre os apetites naturais e a vontade; pois não há em nós senão uma alma, e esta alma não tem em si nenhuma diversidade de partes5 7: a mesma que é sensitiva é racional e todos os seus apetites são suas vontades. O erro que se cometeu em fazê-la desempenhar diversas personagens que são comumente contrárias umas às outras provém apenas de não se haver distinguido bem suas funções das do corpo, ao qual unicamente se deve atribuir tudo quanto pode ser advertido em nós que repugne a nossa razão; de modo que não há nisso outro combate exceto que, como a pequena glândula que fica no meio do cérebro pode ser impelida, de um lado, pela alma, e, de outro, pelos espíritos animais, que são apenas corpos, como já disse acima, acontece às vezes que esses dois impulsos sejam contrários e que o mais forte impeça o efeito do outro. Ora, podemos distinguir duas espécies de movimentos excitados pelos espíritos na glândula: uns representam à alma os objetos que movem os sentidos, ou as impressões que se encontram no cérebro e não efetuam qualquer esforço sobre a vontade; outros efetuam algum esforço sobre ela, a saber, os que causam as paixões ou os movimentos dos corpos que as acompanham; e, quanto aos primeiros, embora impeçam amiúde as ações da alma, ou sejam impedidos por ela, todavia, por não serem diretamente contrários, não se verifica neles nenhum combate. Só os observamos entre os últimos e as vontades que lhes repugnam: por exemplo, entre o esforço com que os espíritos impelem a glândula a causar na alma o desejo de alguma coisa e aquele com que a alma a repele, pela vontade que tem de fugir da mesma coisa; e o que faz principalmente surgir esse combate é que, não tendo a vontade o poder de excitar diretamente as paixões, como já foi dito, é obrigada a usar de engenho e aplicar-se a considerar sucessivamente diversas coisas, das quais, se acontece que uma tenha a força de modificar por um momento o curso dos espíritos, pode acontecer que a seguinte não a tenha e que os espíritos retomem o curso logo depois, porque a disposição precedente nos nervos, no coração e no sangue não mudou, o que leva a alma a sentir-se impelida quase ao mesmo tempo a desejar e a não desejar uma mesma coisa; e daí é que se teve ocasião de imaginar nela duas potências que se combatem. Todavia, ainda se pode conceber algum combate, pelo fato de muitas vezes a mesma causa que excita na alma alguma paixão excitar também certos movimentos no corpo, para os quais a alma em nada contribui, e os quais detém ou procura deter tão logo os apercebe, como sentimos quando aquilo que excita o medo faz também com que os espíritos entrem nos músculos que servem para mexer as pernas na fuga, e com que sejam sustados pela vontade que temos de ser audazes.
Art. 48. Em que se conhece a força ou a fraqueza das almas, e qual é o mal das mais fracas5 8.
Ora, é pela sorte desses combates que cada qual pode conhecer a força ou a fraqueza de sua alma; pois aqueles em quem a vontade pode, naturalmente, com maior facilidade, vencer as paixões e sustar os movimentos do corpo que os acompanham têm, sem dúvida, as almas mais fortes; mas há os que não podem comprovar a própria força porque nunca levam a combate a sua vontade juntamente com suas armas próprias, mas apenas com as que lhes fornecem algumas paixões para resistir a algumas outras. O que denomino as armas próprias são juízos firmes e determinados sobre o conhecimento do bem e do mal, consoante os quais ela resolveu conduzir as ações de sua vida; e as almas mais fracas de todas são aquelas cuja vontade não se decide assim a seguir certos juízos, mas se deixa arrastar continuamente pelas paixões presentes, as quais, sendo muitas vezes contrárias umas às outras, a puxam, ora umas, ora outras, para seu partido e, empregando-a para combater contra si mesma, põem a alma no estado mais deplorável possível. Assim, quando o medo representa a morte como um extremo mal, que só pode ser evitado pela fuga, se a ambição, de outro lado, representa a infâmia dessa fuga como um mal pior que a morte, essas duas paixões agitam diversamente a vontade, que, obedecendo ora a uma, ora a outra, se opõe continuamente a si própria, e assim torna a alma escrava e infeliz.

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