Curiosamente é possível encontrar até mesmo relendo as notas do General Bonaparte alguns conselhos e comentários que parecem ter sido escritos ontem, diretamente dirigidos a personalidades do meio político da cidade. A primeira nota que chama a atenção por se encaixar perfeitamente na situação é a frase do corso na qual ele assinala: "uma Câmara é excelente para obter do povo aquilo que o rei não pode pedir-lhe".
Não é de se estranhar esta atualidade, Napoleão fala das coisas como elas são, não como deveriam ser. Chega até perto do cinismo quando descreve táticas e estratégias para obter e manter o poder.
Como não ficar chocado quando se ouve o general dizer que "há vícios e virtudes circunstanciais" ou que "os homens são melhor governados por seus vícios que por suas virtudes", ou ainda que "tem-se que derramar desgraças sobre aqueles a quem não se pode conceder mais recompensas".
Contudo a quem vive de perto o mundo da política estas coisas não são nada mais que a constatação dos fatos. O meio político reúne todos os vícios do mundo real, destilados até que neles não sobre o menor vestígio de alguma virtude escondida no meio deles.
Para Napoleão a virtude não é senão um subterfúgio ocasional do velhaco. Diz ele: tão tranquilas são as pessoas honradas e tão ativas as velhacas que amiúde é necessário servir-se das segundas". E ele vai mais longe: "há patifes suficientemente patifes para se portarem como pessoas honestas".
Quanto não há por aí de pessoas que agem segundo o velho imperador sem se darem conta, por mera intuição ou instinto de sobrevivência política!
Um dos alvos preferidos de Napoleão é a democracia. Ao mesmo tempo que Napoleão estendeu reformas jurídicas e institucionais de caráter democrático por toda a Europa, fica claro que estes valores, para ele, não eram mais do que uma bandeira para iludir o povo. Ele mesmo diz que o bom líder é aquele que age para seu povo como um mercador de sonhos. "Um povo só se deixa guiar quando se lhe aponta um aponta um futuro, um chefe é um comerciante de esperanças" diz ele textualmente.
Napoleão crê que os homens estão muito mais dispostos a bater-se pelos seus interesses do que pelos seus direitos. Numa época na qual se fala tanto de cidadania e de direitos a frase continua ainda muito viva. O pequeno caporal triunfou porque foi capaz de mostrar à multidão o quanto cada um, individualmente, poderia ganhar com a mudança do status quo, e não porque refletiu abstratamente sobre os direitos que instauraria.
Outro ponto constante em Napoleão é o desprezo pela qualidade da opinião pública, do senso comum. Ele sabe que ela é poderosa e a manobra com habilidade, mas não confia nem nela, nem naqueles que dizem agir em nome dela. "Os povos devem ser salvos apesar de si mesmos", comenta ele.
Hábil jogador do xadrez político, manipulador de intrigas e conspirações, estas artimanhas o preocupavam e o irritavam permanentemente. Fica claro que Napoleão jamais confiava em quem tinha ao seu lado, mas o tempo todo adverte para o cisma do grupo politicamente dominante com conselhos que bem poderiam ser utilizados pelos articuladores do Balaio de Gatos.
Ele diz, por exemplo, que qualquer agrupamento de interesses muito heterogêneo está condenado a se auto-destruir, assim como avisa que "de cada cem favoritos reais, noventa e cinco foram decapitados".
A intriga, e em especial a intriga palaciana, revoltavam Napoleão que a condena em diversos trechos. Os parlamentos são apontados por Napoleão como ninhos estéreis de intrigas e se propõe a agitar diretamente a população, única atitude daqueles que realmente foram capazes de produzir algum poder transformador.
Além disso ele crê que nos parlamentos e gabinetes há uma verdadeira perseguição a todos que realmente tem algum talento e que os partidos "se debilitam pelo medo que tem das pessoas capacitadas".
"Bem analisada, a liberdade política é uma fábula imaginada pelos governos para embalar seus governados", assinala ele em outro ponto. Infelizmente quase 200 anos depois tem de se admitir o quanto as análises cínicas e frias do corso ainda são procedentes, demonstrando a nossa falha em construir um sistema que realmente configurasse o lema de "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" no mundo real e não no vago horizonte de esperanças a ser mercadejadas no balcão do empório de ilusões da política.
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