sábado, 17 de setembro de 2011

O que é filosofia? II


 Imagine um filósofo em uma clínica médica. Ele entra ali para perguntar ao médico sobre sintomas ruins que está sofrendo e, no meio da conversa, isto é, no decorrer da consulta, ele pode começar um bate-papo e perguntar ao médico o que ele pensa sobre um possível fim de determinadas doenças. Até aí, nada de diferente de qualquer outro paciente com alguma cultura. Mas o filósofo autêntico nunca deixa de ser filósofo. Então, enquanto ele está fazendo essas perguntas e a consulta está ocorrendo, ele já abandonou o médico como médico ou como cientista da medicina, e começa a averiguar o que é o mais banal e corriqueiro naquela atividade, ali dentro da clínica. Ele não faz isso intencionalmente. Querendo ou não, se ele é filósofo, a filosofia começa a agir e ele até esquece de suas dores; ele se pega observando o modo pelo qual o médico faz perguntas, ou seja, que tipo de inquérito ele faz. Sem se dar conta, ele já lançou olhares sobre os gestos do médico, sua roupa, sua forma de se dirigir ao paciente e à secretária, como organizou o seu consultório, que tipo de material tem na mesa, se colocou ou não diplomas na parede e como dispôs os seus livros e que tipo de livros estão ali. Aos poucos, a ciência médica brota ali na sala e usa da boca do médico para se apropriar do ambiente e vazar por todos os lados, agarrando o paciente. Ele, o filósofo que entrou ali como paciente, não consegue não notar como é o funcionamento daquilo que ninguém iria achar interessante de investigar, ou seja, o mais banal: o discurso médico, o que o médico fala nas entrelinhas que, às vezes, é o que está claro nas próprias linhas. O que é a ciência falando ali, na boca do médico e por meio daquela boca? Junto com essa pergunta, uma dezena de outras fervilham seu cérebro: que tipo de saber é aquele e qual espécie de poder reina ali? Como que o discurso médico e o discurso da ciência doutrinam os corpos? Qual a razão daquela roupa branca? Por que há uma mesa entre o médico e o paciente? Ao agir assim, o filósofo já está envolvido com a observação da linguagem médica, ele já está dando importância para o que ninguém dá importância exatamente por ser o mais banal, o corriqueiro. A consulta termina. Ele pega a receita e paga a secretária do médico. O médico chama outro paciente, e considera que a consulta anterior acabou e que tudo foi bem, que conversou com um paciente culto. Mas não foi só isso que ocorreu ali na clínica. Talvez ele, o médico, nunca venha a saber que dali saiu um filósofo, e que a filosofia, em um certo sentido, se efetivou naquele seu consultório. Ele jamais saberá que tudo ali que é o corriqueiro, o banal, perdeu a sua banalidade naqueles minutos que o paciente filósofo esteve ali, e que a filosofia reinou em seu local de trabalho, documentando tudo. Toda a banalidade desapareceu enquanto a filosofia lá esteve. Mais tarde, em seu gabinete, o filósofo pode retomar a cena e então aprimorar seu pensamento sobre a captura que fez do discurso do doutor e da prática médica. A própria ciência médica fica disposta, então, para a análise. Pode começar a escrever filosoficamente sobre tudo isso. Pois enquanto esteve no consultório como paciente e se deitou para ser examinado, estava ao mesmo tempo examinando a própria medicina – talvez a única realmente doente ali na clínica (ou não?).
Haveria outro modo do filósofo atuar, nas mesmas condições? Sim! Caso o médico não fosse alguém imerso em seu mundinho, e aceitasse pensar filosoficamente com o filósofo, poderia, no momento da consulta, ser examinado pelo filósofo. Tudo aquilo que o filósofo, em silêncio, observou sobre o discurso e a prática do médico, poderia ser motivo para um diálogo de tipo socrático entre ambos. Escrever, então, seria uma opção (a mais) do filósofo. Mas uma primeira parte do trabalho já estaria feita. A filosofia teria ocorrido ali, como uma forma também de ampliar a consciência do médico a respeito daquilo que jamais havia pensado sobre seu discurso médico. E certamente isso muniria o filósofo de uma visão ainda mais acurada a respeito das hipóteses que levantou sobre o que até então era o mais banal de tudo, o discurso médico. É claro que essa segunda situação é mais difícil hoje em dia. Mas pessoas filosoficamente curiosas e intelectual e moralmente corajosas concordariam em passar por experiências desse tipo. Poucas se dariam esse presente, o de se entregar à ingenuidade filosófica. Todavia, não duvido que elas ainda existam, escondidas aqui e ali.
       Nos dois casos – filosofando às escondidas ou filosofando em diálogo socrático –, a diferença entre o filósofo e seus outros dois colegas preocupados com assuntos gerais, é fácil de ver: o teólogo e o cientista respondem a questões que “realmente importam”, enquanto que o filósofo parece responder a perguntas que não importam. É claro que aqueles que forem ganhos por ele, e então enxergarem o banal como não mais banal, irão se importar daí em diante com aquilo que não importava. Todavia, há uma sutileza na forma como o que é corriqueiro e banal ganha importância na filosofia. E é nisso que a filosofia difere de todas as outras atividades intelectuais. É o modo pelo qual o banal se desbanaliza que marca a filosofia. O banal desbanalizado pela filosofia não pode nunca mais voltar à condição de banal. A filosofia, na sua ingenuidade de olhar o corriqueiro, parece lançar o objeto olhado para uma condição acima daquela observada pelos não-ingênuos. Todavia, quando esse mesmo objeto, uma vez desbanalizado pela filosofia, é tocado pela ciência e pela teologia, ele readquire a condição de banal. Pois a ciência e a teologia recolocam as coisas no lugar. Elas são conservadoras por natureza, mesmo quando parecem revolucionárias. Elas reordenam tudo para que tudo ganhe uma utilidade comum. Para explicar isso, nada melhor do que duas tiras da Mafalda, do cartunista argentino Quino.

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