Mafalda age como uma criança curiosa. Portanto, não raro, como filósofa. Todavia, se mantém como criança – sem perder a ingenuidade, a condição do filosofar. Ela adora fazer perguntas sobre coisas banais; isto é, coisas e situações que são vistas como aquilo a respeito do que não devemos nos preocupar, pois, como muitas pessoas comentam “desde que o mundo é mundo é assim mesmo”. Todavia, o filósofo é aquele que não se deixa levar facilmente pelo convite à passividade por uma frase do tipo “ah, é assim mesmo”. O filósofo é aquele que ouve o “é assim mesmo” e, em seguida, já começa a pensar que talvez seja o caso de perguntar “deve ser assim mesmo, deve?”.
Na conversa com a sua mãe (fig. i.1), Mafalda pergunta sobre a pobreza. Por que existem os pobres? – é o que Mafalda quer saber. A mãe engasga. Talvez ela, a mãe, nunca tenha pensado seriamente no assunto. Talvez ela não queira pensar. Pode ser que tenha pensado, mas nunca tenha imaginado seriamente que há o que gera a pobreza. Ou ela – quem sabe? – nem sequer sonhe com um mundo sem pobres; e, então, se assim é, para ela a idéia da pobreza não é compatível com a pergunta de Mafalda. Parece esquisito querer encontrar causas e/ou razões para a pobreza, uma vez que a pobreza é algo “que está aí”. Como diriam alguns: pergunta de criança. Ou como diriam outros: pergunta de maluco. Ou ainda outros: pergunta de filósofo. Mas Mafalda não vê o engasgar da mãe e as reticências como uma situação de alguém que não tem resposta ou que estranha ter que encontrar uma resposta. Ao contrário, ela acredita que há uma resposta para a sua pergunta. Ela se prepara para uma resposta. O engasgar da mãe é motivo para ela achar que o adulto está se preparando para uma grande resposta. “Eu não suspeitava que a minha pergunta fosse tão interessante” – é o que Mafalda diz. O pigarrear e a entonação da mãe dão o fio da meada para Mafalda: o que se imaginava banal não é banal!
O passeio de Mafalda com Susanita, sua amiga (fig. 2), mostra outra situação de tratamento do banal. Se os pobres causam dor na alma de Mafalda, para Susanita isso teria uma solução fácil: bastaria que os pobres fossem retirados das ruas. Não deveriam ser retirados como pessoas que poderiam ter algo a fazer, algo no que trabalhar, de modo a não serem tão pobres; deveriam apenas ser retirados, tais como objetos – aquilo que não teria de ser posto sob a vista de quem está ali para simplesmente passear. O mundo de Susanita não é um mundo de pessoas, é um mundo onde tudo que ela vê tem o aspecto de vitrine de loja. Tudo está ali para ser bonito ou feio, de modo que possamos escolher. Os pobres, ali mostrados, são feios. Quem levaria aquele tipo de mercadoria para casa? Ninguém. Então, estão apenas estragando a “vitrine da cidade”, estão causando dano na paisagem.
A dor na alma de Mafalda é um sentimento que o banal lhe provoca, um sentimento que Susanita não tem, ao menos não do modo que Mafalda o tem. Pois para Susanita o banal – a pobreza – é de fato banal. A curiosidade de Mafalda pela origem da pobreza é a maneira pela qual ela já está sendo despertada diante do banal. O banal está começando a deixar de ser banal para Mafalda. Ela não se conforma que não existam as causas da pobreza. Ela não aceita que não existam razões, ou, mais acertadamente, boas razões para a pobreza existir, uma vez que, na sua cabeça, há razões de sobra para a pobreza não existir.
O que é banal – ou quase – para sua mãe, e também para Susanita (ainda que de modo diferente), já não é banal para Mafalda. Ela está estranhando que algumas pessoas tenham de existir como pobres. Ela está admirada com essa situação em que a pobreza tenha de estar aí diante de outros que não são pobres e diante de um mundo que parece ter condições de não ter pobres. (Não é mesmo? Estamos errados caso acreditemos que um mundo como este nosso, com tanta possibilidade de gerar riquezas, não teria condições de não ter pobreza?). Então, o banal – a existência dos pobres – começa a se des-banalizar para ela. Eis que Mafalda começa a filosofar. A pergunta tipicamente filosófica é aquela que se dirige ao banal exatamente para torná-lo algo não mais banal. O que Mafalda faz na desbanalização? Ela admira e estranha. Sim, a filosofia, desde sua origem na Grécia antiga, começa pela admiração e pelo estranhamento do mundo. Platão e Aristóteles tomaram o começo do filosofar segundo tal “estranhamento com o mundo”.
Mas, perguntar por causas e razões do que é visto naquilo que é estranhado é o que marca a atuação diferenciada do filósofo? Não só. O cientista e o teólogo podem perguntar por causas da pobreza. Aqui é que a filosofia realmente se diferencia da ciência, da teologia e de outros campos doutrinários e/ou investigativos. É que causas e razões, para o filósofo, estão atrelados a uma visão que não se desgarra da ingenuidade; pois ele pergunta por causas e razões em associação à visão de que tudo poderia ser de outro modo.
Caso fosse cientista, Mafalda talvez perguntasse pelas causas da pobreza, mas dificilmente colocaria no horizonte de sua reflexão a idéia de um mundo sem qualquer pobreza. O cientista pode pensar em um mundo com menos pobreza, mas não em um mundo sem pobreza. Mafalda atua como filósofa: ao ver os pobres, ela já pensa em alternativas para a pobreza não existir de uma vez: ela crê que é mais racional um mundo onde a pobreza não exista, uma vez que ela mesma tem várias idéias para que os pobres não sejam pobres (que criança que não tem?). Caso fosse religiosa, Mafalda poderia ter pena dos pobres, mas não deveria lhe ocorrer em encontrar causas humanas para a pobreza ou alternativas para tornar o mundo mais racional e, então, um mundo sem pobres. Ela procuraria ajudar os pobres, considerando que eles sempre existiriam. Afinal, Deus fez e comanda o mundo, não? Mas Mafalda atua como filósofa: usa o verbo “haveria de” para indicar uma atitude, uma direção em favor de uma situação que é própria da filosofia: ver o que está estabelecido ser questionado, se des-estabelecer, para que disso possa surgir o novo.
Isso que o filósofo faz e que ele acredita que é o melhor uso da razão, para a maioria das pessoas é algo muito esquisito. Por isso mesmo, não raro, não são poucos os que tendem a ver o filósofo como alguém que “não vive nesse mundo”, que “fala coisas estranhas”. Alguns até querem ser idiossincráticos para se parecer com filósofos, principalmente quando, em algum lugar, “ser filósofo” se torna uma moda. Mas o filósofo não é idiossincrático. O bom e verdadeiro filósofo não tem nada de idiossincrático e nem faz pose. Nem se coloca distante dos outros – quem age assim, acredite, não é filósofo, é apenas um pedante que se imagina inteligente ou quer se fazer passar por tal. Ele, o filósofo, pode parecer esquisito para muitas pessoas, mas não por se afastar delas e tratá-las como inferiores. Ele parece esquisito, pois, sabe-se lá qual o motivo inicial, ele tem olhos e ouvidos para o que a maioria acha que “é assim mesmo”. Tudo já começa esquisito por conta da desbanalização do banal, e tudo fica mais estranho ainda, quando o que é desbanalizado se torna um problema – para o qual o filósofo quer soluções. Esse desejo de realização e de transformação sempre foi próprio da filosofia, mesmo quando esta advogou a contemplação e a não intervenção no mundo. Tudo isso é a utilidade da filosofia.
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