quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O que é filosofia? I


O que faz o filósofo? O filósofo, o cientista e o teólogo são pessoas cujo trabalho intelectual é bem diferente de outros trabalhos que também exigem disposição e tirocínio mentais, mas que são mais comumente conhecidos. Em nossa sociedade o trabalho do romancista ou do advogado ou do professor universitário (de ciências humanas) ou do diretor de cinema são mais comuns do que o do filósofo. O que os que são chamados de “os pensadores” fazem de especial que os torna diferentes?
Pensadores? Sim, não raro, chamamos o filósofo, o cientista e o teólogo de "pensadores". No que eles se empenham?
O cientista e o teólogo são dois tipos de intelectuais que, ao lado do filósofo, formam o trio que cuida de assuntos gerais da sociedade, diferentemente de outros diversos profissionais que também não são "trabalhadores manuais", como o médico, o engenheiro, o advogado, o fisioterapeuta, o padre, o bancário e assim por diante. Estes, por sua vez, são os que cuidam de aspectos particulares da nossa vida social e de parte de nossa vida individual e particular. Isto é, perguntamos ao médico, por exemplo, a respeito de algum problema de saúde, particular, e esperamos que ele saiba dizer algo sobre isso para guiar o nosso tratamento. Não queremos saber sua opinião sobre a ciência médica em geral ou, por exemplo, se a engenharia genética poderá realmente encontrar a cura para tudo que ela promete curar. Todavia, se fazemos a ele este último tipo de pergunta, então já não estamos mais em uma consulta médica, estamos entrevistando o médico enquanto um cientista do campo médico. De modo semelhante, procuramos o padre e pedimos um conselho, e esperamos que ele possa ser alguém de bom senso, capaz de dar uma resposta útil. Não queremos saber dele se o que temos de fazer, uma vez “aprovado por Deus”, como ele poderá dizer, pode ou não ferir outras medidas também “aprovadas por Deus”. Mas se fazemos uma pergunta como esta, de caráter geral – sobre o que Deus quer, segundo uma dada (a nossa) religião – já não estamos mais considerando o padre simplesmente como o nosso pároco, estamos querendo que ele atue como teólogo. Procuramos no cientista e no teólogo – ou em professores que atuam como tais – respostas para as chamadas “grandes questões”. O que são elas? São questões que antes de nos afetar individualmente afetam – ou acreditamos que afetam – todo um grupo ou mesmo toda a humanidade.
Mas e o filósofo? No que ele se diferencia desses dois outros intelectuais, o cientista e o teólogo? Em princípio, o filósofo teria de ser alguém muito mais liberto de dogmas ou de posições acríticas do que o cientista e o teólogo. Como assim? O que é que faz o filósofo que o torna distinto do cientista e do teólogo?
Podemos conversar horas com um professor de filosofia sobre como estudar filosofia ou sobre o que o filósofo Jean Paul Sartre escreveu ou sobre como que a “filosofia analítica” é diferente da “filosofia continental” e assim por diante. Isso não quer dizer que estamos conversando com um filósofo de um modo filosófico. O filósofo pode nos ajudar em questões desse tipo, atuando como professor de filosofia ou como um homem de cultura geral. Todavia, se queremos ter com ele uma conversa autenticamente filosófica, se queremos ver o filósofo filosofar, o procedimento é outro – bem outro: não escaparemos de ter de nos entregar, nós mesmos, à filosofia; acabaremos por filosofar com ele. Enfim: teremos de filosofar.
A filosofia é como uma jovem pudica; ela raramente se deixa assistir em seus momentos íntimos. Ela, para ser vista, requisita o engajamento. Uma jovem pudica não se deixa ver no banho ou na troca de roupas a não ser por quem se comprometeu com ela. Assim é a filosofia. Ele exige amizade em relação ao saber - comprometimento. Caso se torne um “amigo do saber”, então, poderá entrar na morada da filosofia. Não é possível vê-la em ação, realmente, sem participar de sua missão e seus afazeres. Mas, se para ver a filosofia funcionar precisamos filosofar, vamos filosofar como? A respeito do quê? Ora, tanto a respeito das questões particulares que levamos ao médico e ao padre quanto a respeito das questões gerais que encaminhamos ao cientista e ao teólogo. O filósofo não é como eles, que gosta de respostas somente. O filósofo agarra tanto suas respostas quanto as perguntas. Em todos os casos, o filósofo lança um olhar diferente, inédito, inusitado sobre tais questões – perguntas e respostas em conjunto – e, mais ainda, sobre as situações que as envolvem. Ele reconsidera as questões de uma forma que elas não haviam sido pensadas. Como faz isso? Mágica? Mais inteligência que outros? Nada disso. Apenas diferença no olhar, pois ele amplia o quadro no qual as questões estão situadas. Ele olha tudo com mais ingenuidade que outros, de modo a ver aquilo que, talvez, fosse mais notado pelas crianças e, quem sabe, pelos loucos. Todavia, ele não faz o papel de criança e nem de louco. Caso suas questões pareçam idiossincráticas, é porque os que o rodeiam não estão mais acostumados com o olhar ingênuo. Ele busca os traços mais ordinários das situações envolvidas nas perguntas. Ele debruça sobre o que não desperta a curiosidade; é ali que lança dúvidas e perguntas. No limite, ele transforma as perguntas, até então postas para a situação como as únicas possíveis ou única importantes. Modifica as perguntas por causa de que nota não o que é considerado importante e não o que é bastante observado nas questões e nas situações que as envolvem, mas agarra, sim, o que é corriqueiro e, de tão corriqueiro, aquilo que parece não merecer qualquer pergunta – o banal. Na medida em que ele faz o banal aparecer, ele inicia a operação de retirar o banal da sua condição de banalidade; ele desbanaliza o banal. A filosofia, então, como atividade do filósofo autêntico, é a desbanalização do banal.

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