quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Aparência e Realidade II


Deparamo-nos com dificuldades análogas quando examinamos o sentido do tato. Não há dúvida que a mesa produz sempre em nós uma sensação de dureza e que sentimos a sua resistência à pressão. No entanto, a sensação que temos depende da força e da parte do corpo com que pressionamos a mesa. Não se pode supor, portanto, que as sensações diferentes que resultam das pressões diferentes ou das partes do corpo diferentes, revelem diretamente uma propriedade específica da mesa, mas que, na melhor das hipóteses, sejam sinais de alguma propriedade que talvez cause todas as sensações, embora não apareça efetivamente em nenhuma delas. E o mesmo se aplica de forma ainda mais óbvia aos sons produzidos percutindo a mesa.
Torna-se desta forma evidente que a mesa real, se existe, não é idêntica à de que temos experiência imediata pela visão, pelo tato ou pela audição. Da mesa real, se existe, não temos qualquer conhecimento imediato, embora deva ser obtida por inferência a partir daquilo de que temos conhecimento imediato. Isto dá origem simultaneamente a duas questões bastante difíceis, a saber: 1) Existe uma mesa real? 2) Se sim, que espécie de objeto pode ser?
A posse de alguns termos simples, cujo significado seja definido e claro, ajudar-nos-á a examinar estas questões. Chamaremos “dados dos sentidos” às coisas de que temos conhecimento imediato na sensação: coisas como cores, sons, cheiros, durezas, rugosidades, etc. Chamaremos “sensação” à experiência de ter imediatamente consciência destas coisas. Assim, sempre que vemos uma cor, temos uma sensação da cor, mas a própria cor é um dado dos sentidos, não uma sensação. A cor é aquilo de que estamos imediatamente conscientes, e a própria consciência é a sensação. É evidente que se viermos a saber algo acerca da mesa, deve ser por intermédio dos dados dos sentidos — a cor castanha, a forma oval, a lisura, etc. — que associamos com a mesa; mas pelas razões já expostas, não podemos dizer que a mesa é os dados dos sentidos, ou mesmo que os dados dos sentidos são propriedades diretas da mesa. Surge deste modo o problema da relação entre os dados dos sentidos e a mesa real, supondo que existe uma tal coisa.
Chamaremos à mesa real, se existe, “objeto físico”. Por conseguinte, temos de examinar a relação entre os dados dos sentidos e os objetos físicos. À coleção de todos os objetos físicos chama-se “matéria”. Assim, as nossas duas questões podem ser reafirmadas da seguinte forma: 1) Existe matéria? 2) Se sim, qual é a sua natureza?
O Bispo Berkeley (1685-1753) foi o primeiro filósofo a dar destaque às razões para que neguemos a existência independentemente dos objetos imediatos dos nossos sentidos. A sua obra Três Diálogos entre Hylas e Philonous, em Oposição aos Cépticos e Ateus procura provar que não existe matéria e que o mundo é constituído apenas pelas mentes e as suas idéias. Hylas tinha até esse momento acreditado na matéria, mas não é adversário para Philonous, que o leva inexoravelmente a cair em contradições e paradoxos, e faz a negação da matéria parecer, no fim, quase senso comum. Os argumentos usados são de valor muito desigual: alguns são importantes e corretos; outros são confusos ou cavilosos. Mas Berkeley possui o mérito de ter mostrado que se pode negar sem absurdo a existência da matéria, e que, se há coisas que existem independentemente de nós, não podem ser os objetos imediatos das nossas sensações.
O problema da existência da matéria envolve duas questões diferentes que é importante distinguir com clareza. Normalmente entendemos por “matéria” algo oposto a “mente”, algo que ocupa espaço e é completamente incapaz de qualquer espécie de pensamento ou consciência. É principalmente neste sentido que Berkeley nega a matéria; isto é, ele não nega que os dados dos sentidos que normalmente consideramos como sinais da existência da mesa sejam realmente sinais da existência de algo independente de nós, mas nega que este algo seja não mental, que não seja a mente ou as idéias concebidas por uma mente. Ele admite que deve haver algo que continue a existir quando abandonamos o aposento ou fechamos os olhos, e que aquilo a que chamamos ver a mesa nos dá razões para crermos em algo que persiste mesmo quando não o estamos a ver. Mas pensa que este algo não pode ter uma natureza radicalmente diferente daquilo que vemos, e que não pode ser completamente independente da visão, embora deva ser independente da nossa visão. É assim levado a olhar a mesa “real” como uma idéia na mente de Deus. Esta idéia tem a permanência e a independência em relação a nós exigidas, sem ser — como de outro modo a matéria seria — algo totalmente incognoscível, no sentido em que a podemos apenas inferir mas nunca podemos ter diretamente e imediatamente consciência dela.
Houve outros filósofos depois de Berkeley a afirmar também que, embora a existência da mesa não dependa dela ser vista por mim, depende de ser vista (ou de algum modo apreendida na sensação) por uma mente — não necessariamente a mente de Deus, mas com maior freqüência a mente coletiva do universo. Como Berkeley, defendem esta posição principalmente porque pensam que não pode existir nada real — ou, em todo o caso, nada que se saiba sê-lo — exceto as mentes com os seus pensamentos e sentimentos. Podemos formular o argumento com que sustentam a sua posição mais ou menos assim: “Tudo o que pode ser pensado é uma idéia na mente da pessoa que a pensa; portanto, só idéias nas mentes podem ser pensadas; portanto, qualquer outra coisa é inconcebível, e o que é inconcebível não pode existir.”
Em minha opinião este argumento é falacioso; e, obviamente, aqueles que o empregam não o expressam de forma tão concisa ou grosseira. Mas válido ou não, o argumento com uma ou outra forma tem sido amplamente usado, e muitos filósofos, talvez a maioria, sustentaram que só as mentes e as suas idéias são reais. A estes filósofos chama-se “idealistas”. Quando explicam a matéria, ou dizem, como Berkeley, que a matéria é de fato apenas uma coleção de idéias, ou dizem, como Leibniz (1646-1716), que o que aparece como matéria é de fato uma coleção de mentes mais ou menos rudimentares.
Mas estes filósofos, embora neguem a matéria enquanto oposta à mente, admitem-na, contudo, noutro sentido. Recordemos as duas questões que fizemos: 1) Existe uma mesa real? 2) Se sim, que espécie de objeto pode ser? Ora, tanto Berkeley como Leibniz admitem que existe uma mesa real, mas Berkeley diz que ela consiste em certas idéias na mente de Deus e Leibniz diz que é uma colônia de almas. Portanto, ambos respondem pela afirmativa à primeira questão e divergem da visão das pessoas comuns apenas na resposta à segunda. Na verdade, quase todos os filósofos parecem concordar com a existência de uma mesa real; quase todos concordam que, por muito que os nossos dados dos sentidos — a cor, a forma, a lisura, etc. — possam depender de nós, a sua ocorrência é, todavia, um sinal de algo que existe independentemente de nós, algo que talvez difira completamente dos nossos dados dos sentidos e, apesar de tudo, seja olhado como a causa desses dados dos sentidos sempre que estamos numa relação apropriada com a mesa real.
Obviamente, este ponto em que os filósofos concordam — a posição de que existe uma mesa real, qualquer que seja a sua natureza — é de importância vital, e vale a pena examinar que razões temos para aceitar esta posição antes de abordarmos a questão da natureza da mesa real. Por este motivo, o próximo capítulo tratará das razões para supormos que existe uma mesa real.
Antes de avançarmos será bom que examinemos brevemente o que descobrimos até agora. Vimos que, se investigarmos um objeto vulgar, do gênero que os sentidos conhecem, o que os sentidos imediatamente nos dizem não é a verdade acerca do objeto em si mesmo, mas apenas a verdade acerca de determinados dados dos sentidos que, tanto quanto podemos ver, dependem das relações entre nós e o objeto. Por conseqüência, o que vemos e sentimos diretamente é apenas uma “aparência”, que acreditamos ser o sinal de uma “realidade” escondida. Mas, se a realidade não é o que aparece, temos maneira de saber se existe uma realidade? E, se sim, temos maneira de descobrir a que é que se assemelha?
Estas questões são desconcertantes e é difícil provar que não são verdadeiras mesmo as hipóteses mais estranhas. Assim, a mesa, que até agora só provocou em nós pensamentos triviais, tornou-se num problema com muitas e surpreendentes possibilidades. A única coisa que sabemos a seu respeito é que não é o que parece. Até agora, além deste modesto resultado, temos toda a liberdade para conjeturar. Leibniz diz-nos que é uma comunidade de almas; Berkeley uma ideia na mente de Deus; a ciência, não menos maravilhosa, uma vasta coleção de cargas elétricas dotadas de movimento violento.
No meio destas possibilidades surpreendentes, a dúvida sugere que talvez não exista nenhuma mesa. Embora a filosofia não possa responder a tantas questões quanto desejaríamos, pode colocar questões que tornam o mundo mais interessante e mostram o estranho e maravilhoso que existe mesmo nas coisas mais vulgares da vida quotidiana.

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