terça-feira, 13 de setembro de 2011

Santo Agostinho: a verdade e a felicidade residem em Deus II


Como aponta Novaes, em seu artigo “Nota sobre o problema da universalidade em Agostinho, do ponto de vista da relação entre fé e razão”, Agostinho destoa tanto dos aristotélicos, quanto dos estóicos e epicuristas em sua concepção de felicidade. Os primeiros tomam a felicidade como uma atividade da alma em consonância com a virtude, os segundos como um vigor da alma e os terceiros como a vontade do corpo. Para um cristão, porém, a felicidade é um dom de Deus. Não obstante, o homem deve procurá-la através da purificação da alma. Para purificar a alma o homem tem de reconhecer a condição miserável da humanidade após o pecado original, e tem de ter a humildade de reconhecer o a felicidade como alheia a si. O homem tem de se tornar digno de receber a graça. A idéia da ascese da alma é muito importante também para os platônicos e neoplatônicos (3), que influenciaram Agostinho profundamente. Mas Agostinho vê nesta doutrina o erro crucial de Porfírio, por não ter reconhecido que o verdadeiro caminho não é humano, mas provém do Absoluto, de Deus. (4)
    O homem é mais especial que as outras criações de Deus, e que os outros seres dotados de alma (animais), pois tem uma alma racional. O homem é especial porque foi feito à imagem e semelhança de Deus. {5} No Gênesis, antes da queda, Deus concede ao homem que usufrua livremente da terra. Para Agostinho, a semelhança do homem com o seu criador é a razão. Deus, conhecedor de todas as coisas, possui também a razão infinita. Porém a razão humana está corrompida, e distante da divina. O homem tem um “déficit moral”, e por isso não consegue cumprir plenamente a sua natureza de animal racional. E mesmo os bebes já nascem no pecado, como exemplifica Agostinho em sua autobiografia, quando se recrimina pelo seu deleite durante o amamentamento. Os desejos e as paixões impedem um bom uso da razão, e impedem uma vida contemplativa. Mesmo ao se recolher em seu monastério, se entregando à devoção religiosa ao lado de companheiros como Alípio e Evódio, Agostinho nunca conseguiu se livrar das preocupações mundanas. Era afastado do otium intelectuale , por exemplo, pelas suas obrigações com o povo em suas funções sacerdotais ou familiares.
    O problema do pecado original é fundamental para compreender-se o que se segue, por isso me demorarei um pouco mais nele. Antes de comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, a alma encontrou sua perfeição no paraíso. Livre de dúvidas e incertezas, o homem apenas era no seio da natureza. Nada foi negado a Adão e Eva, e eles estavam integrados à toda criação, circulando livremente e de maneira abençoada. Mas a vontade é infinita, e ao homem foi dado o poder de escolher. Assim, seduzida pela serpente Eva desobedece ao único mandamento até então, e o homem, sabendo o que é mal e o que é bem, pode escolher entre os dois, e pode portanto, se afastar do Bem do Supremo Ser. Ele passa a poder querer o mal, e é sobre este ponto de vista que a purificação da alma deve ser entendida. Esta é necessária para a escolha certa quando a graça se apresentar. A liberdade, para Agostinho, vem a ser a capacidade consciente e reflexa que tem o espírito de determinar por si e espontaneamente, a querer e preferir acima de tudo o Bem absoluto e perfeito, do modo que este se lhe apresente, e nunca preferindo nada contrário. Deus, do alto, abarca a todos aqueles que o invocam com um olhar e pode iluminar alguns com sua graça. Muitos são chamados, mas poucos escolhidos.
    Esta é a causa dos pecados da humanidade, o livre-arbítrio. Pela perversão da vontade o homem escolhe a privação do ser. Este quadro só encontra redenção em Jesus Cristo, o mediador entre Deus e os homens. O cristão tem de aceitar pela fé o mistério da Trindade, que Jesus Cristo é o verbo encarnado, vindo ao mundo terrenos e morto pelos homens, para redimir a humanidade. É preciso pois, que o homem tenha fé, e acredite em algo além de si e do mundo sensorial, em algo invisível. Precisa ter a humildade de admitir seu “déficit moral” e que o caminho da verdade lhe é extraposto (NOVAES, 34).
    A purificação da alma para receber a revelação é feita de várias formas. Agostinho defende ardorosamente um ascetismo, chegando a condenar o casamento e a procriação, e a cantar a maravilha do celibato. O homem precisa se livrar das paixões, e por paixões entende-se tudo aquilo que move (ou comove) a alma. Somente uma alma estável é capaz de perceber a Idéia. Para esta elevação do espírito, é necessário também o auto-conhecimento. (6)
    Estando a alma purificada, está preparado o terreno para conhecer. A fé chama a razão para algo além dela própria, para o mistério. À razão cabe investigar os conteúdos da fé. Como aponta Novaes, não há uma oposição entre estas duas formas de conhecer, porém uma reciprocidade, uma completude, uma convergência. “Para entender, com o intuito de entender, uma condição é crer. Mas o que é entendido, o que é inteligido, exige novamente a fé, e assim por diante.” (NOVAES, 41). Há uma precedência do invisível sobre o visível, do transcendente (inteligível) sobre o sensível. A alma é hierarquicamente superior ao corpo. O homem precisa crer para entender. (7) Este entendimento é feito racionalmente, Mas o conhecimento da razão divina ultrapassa em muito a finitude da razão humana, e por isso o homem precisa novamente da fé para alcançar o conhecimento, sendo que este não se esgota nunca, nem quem bebe do conhecimento de Deus sacia sua sede.

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