quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Poema de Fernando Pessoa

Fosse eu apenas, não sei onde ou como,
Uma coisa existente sem viver,
Noite de Vida sem amanhecer
Entre as sirtes do meu dourado assomo....
Fada maliciosa ou incerto gnomo
Fadado houvesse de não pertencer
Meu intuito gloríola com Ter
A árvore do meu uso o único pomo...
Fosse eu uma metáfora somente
Escrita nalgum livro insubsistente
Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,
Mas doente, e , num crepúsculo de espadas,
Morrendo entre bandeiras desfraldadas
Na última tarde de um império em chamas...

A minha Causa é a Causa de nada


Há tanta coisa a querer ser a minha causa! A começar pela boa causa, depois a causa de Deus, a causa da humanidade, da verdade, da liberdade, do humanitarismo, da justiça; para além disso, a causa do meu povo, do meu príncipe, da minha pátria, e finalmente até a causa do espírito e milhares de outras. A única coisa que não está prevista é que a minha causa seja a causa de mim mesmo! “Que vergonha, a deste egoísmo que só pensa em si!”
Vejamos então como se comportam com a sua causa aqueles para cuja causa se espera que nós trabalhemos, nos sacrifiquemos e nos entusiasmemos.
Vós, que sabeis dizer tanta coisa profunda sobre Deus e durante milênios haveis “sondado os enigmas da divindade” e lhes perscrutastes o âmago, vós sabereis decerto dizer-nos como é que o próprio Deus trata a “causa de Deus”, que nós estamos destinados a servir. E de fato vós não fazeis mistério nenhum do modo como o Senhor se comporta. Qual é então a sua causa? Terá ele, como de nós se espera, feito de uma causa estranha, da causa da verdade e do amor, a sua própria causa? A vós, este mal-entendido causa-vos indignação, e pretendeis ensinar-nos que a causa de Deus é sem dúvida a causa da verdade e do amor, mas que não se pode dizer que esta causa lhe seja estranha, já que Deus é, ele mesmo, a verdade e o amor; a vós, indigna-vos a suposição de que Deus possa, como nós, pobres vermes, apoiar uma causa estranha como se sua fosse. “Como poderia Deus assumir a causa da verdade se ele próprio não fosse a verdade?” Ele só se preocupa com a sua causa, mas como é tudo em tudo, também tudo é sua causa! Nós, porém, não somos tudo em tudo, e a nossa é bem pequena e desprezível: é por isso que temos de “servir uma causa superior“. Do exposto fica claro que Deus só se preocupa com o que é seu, só se ocupa de si mesmo, só pensa em si e só se vê a si — e ai de tudo aquilo que não caia nas suas graças! Ele não serve nenhuma instância superior e só a si se satisfaz. A sua causa é uma causa… puramente egoísta.
E que se passa com a humanidade, cuja causa nos dizem que devemos assumir como nossa? Será a sua causa a de um outro, e serve a humanidade uma causa superior? Não, a humanidade só olha para si própria, a humanidade só quer incentivar o progresso da humanidade, a humanidade tem em si mesma a sua causa. Para que ela se desenvolva, os povos e os indivíduos têm de sofrer por sua causa, e depois de terem realizado aquilo de que a humanidade precisa, ela, por gratidão, atira-os para a estrumeira da história. Não será a causa da humanidade uma causa… puramente egoísta?
Nem preciso de demonstrar a todos aqueles que nos querem impingir a sua causa que o que os move são apenas eles mesmos, e não nós, o seu bem-estar, e não o nosso. Olhem só para o resto do lote. Será que a verdade, a liberdade, o humanitarismo, a justiça desejam outra coisa que não seja o vosso entusiasmo para os servir?
Por isso todos se sentem nas suas sete quintas quando zelosamente lhes são prestadas honras. Veja-se o que se passa com o povo, protegido por dedicados patriotas. Os patriotas tombam em sangrentos combates, ou lutando contra a fome e a miséria. E acham que o povo quer saber disso? O povo “floresce” com o estrume dos seus cadáveres! Os indivíduos morreram “pela grande causa do povo”, o povo despede-se deles com umas palavras de agradecimento e… tira daí proveito. É o que se chama um egoísmo rentável.
Mas vejam só aquele sultão que tão dedicadamente se ocupa dos “seus”. Não será isto o altruísmo em estado puro, não se sacrifica ele hora a hora pelos seus? Exatamente, pelos “seus”. Tenta tu mostrar-te uma vez, não como seu, mas como teu, e vais parar às masmorras por teres fugido ao seu egoísmo. A causa do sultão não é outra senão ele próprio: ele é para si tudo em tudo, é único, e não tolera ninguém que ouse não ser um dos “seus”.
E todos estes brilhantes exemplos não chegam para vos convencer de que o egoísta leva sempre a melhor? Por mim, extraio daqui uma lição: em vez de continuar a servir com altruísmo aqueles grandes egoístas, sou eu próprio o egoísta.
Nada é a causa de Deus e da humanidade, nada a não ser eles próprios. Do mesmo modo, Eu sou a minha causa, eu que, como Deus, sou o nada de tudo o resto, eu que sou o meu tudo, eu que sou o único.
Se Deus e a humanidade, como vós assegurais, têm em si mesmos substância suficiente para serem, em si, tudo em tudo, então eu sinto que a mim me faltará muito menos, e que não terei de me lamentar pela minha “vacuidade”. O nada que eu sou não o é no sentido da vacuidade, mas antes o nada criador, o nada a partir do qual eu próprio, como criador, tudo crio.
Por isso: nada de causas que não sejam única e exclusivamente a minha causa! Vocês dirão que a minha causa deveria, então, ao menos ser a “boa causa”. Qual bom, qual mau! Eu próprio sou a minha causa, e eu não sou nem bom nem mau. Nem uma nem outra coisa fazem para mim qualquer sentido.
O divino é a causa de Deus, o humano a causa “do homem”. A minha causa não é nem o divino nem o humano, não é o verdadeiro, o bom, o justo, o livre, etc., mas exclusivamente o que é meu. E esta não é uma causa universal, mas sim… única, tal como eu.

Aparência e Realidade II


Deparamo-nos com dificuldades análogas quando examinamos o sentido do tato. Não há dúvida que a mesa produz sempre em nós uma sensação de dureza e que sentimos a sua resistência à pressão. No entanto, a sensação que temos depende da força e da parte do corpo com que pressionamos a mesa. Não se pode supor, portanto, que as sensações diferentes que resultam das pressões diferentes ou das partes do corpo diferentes, revelem diretamente uma propriedade específica da mesa, mas que, na melhor das hipóteses, sejam sinais de alguma propriedade que talvez cause todas as sensações, embora não apareça efetivamente em nenhuma delas. E o mesmo se aplica de forma ainda mais óbvia aos sons produzidos percutindo a mesa.
Torna-se desta forma evidente que a mesa real, se existe, não é idêntica à de que temos experiência imediata pela visão, pelo tato ou pela audição. Da mesa real, se existe, não temos qualquer conhecimento imediato, embora deva ser obtida por inferência a partir daquilo de que temos conhecimento imediato. Isto dá origem simultaneamente a duas questões bastante difíceis, a saber: 1) Existe uma mesa real? 2) Se sim, que espécie de objeto pode ser?
A posse de alguns termos simples, cujo significado seja definido e claro, ajudar-nos-á a examinar estas questões. Chamaremos “dados dos sentidos” às coisas de que temos conhecimento imediato na sensação: coisas como cores, sons, cheiros, durezas, rugosidades, etc. Chamaremos “sensação” à experiência de ter imediatamente consciência destas coisas. Assim, sempre que vemos uma cor, temos uma sensação da cor, mas a própria cor é um dado dos sentidos, não uma sensação. A cor é aquilo de que estamos imediatamente conscientes, e a própria consciência é a sensação. É evidente que se viermos a saber algo acerca da mesa, deve ser por intermédio dos dados dos sentidos — a cor castanha, a forma oval, a lisura, etc. — que associamos com a mesa; mas pelas razões já expostas, não podemos dizer que a mesa é os dados dos sentidos, ou mesmo que os dados dos sentidos são propriedades diretas da mesa. Surge deste modo o problema da relação entre os dados dos sentidos e a mesa real, supondo que existe uma tal coisa.
Chamaremos à mesa real, se existe, “objeto físico”. Por conseguinte, temos de examinar a relação entre os dados dos sentidos e os objetos físicos. À coleção de todos os objetos físicos chama-se “matéria”. Assim, as nossas duas questões podem ser reafirmadas da seguinte forma: 1) Existe matéria? 2) Se sim, qual é a sua natureza?
O Bispo Berkeley (1685-1753) foi o primeiro filósofo a dar destaque às razões para que neguemos a existência independentemente dos objetos imediatos dos nossos sentidos. A sua obra Três Diálogos entre Hylas e Philonous, em Oposição aos Cépticos e Ateus procura provar que não existe matéria e que o mundo é constituído apenas pelas mentes e as suas idéias. Hylas tinha até esse momento acreditado na matéria, mas não é adversário para Philonous, que o leva inexoravelmente a cair em contradições e paradoxos, e faz a negação da matéria parecer, no fim, quase senso comum. Os argumentos usados são de valor muito desigual: alguns são importantes e corretos; outros são confusos ou cavilosos. Mas Berkeley possui o mérito de ter mostrado que se pode negar sem absurdo a existência da matéria, e que, se há coisas que existem independentemente de nós, não podem ser os objetos imediatos das nossas sensações.
O problema da existência da matéria envolve duas questões diferentes que é importante distinguir com clareza. Normalmente entendemos por “matéria” algo oposto a “mente”, algo que ocupa espaço e é completamente incapaz de qualquer espécie de pensamento ou consciência. É principalmente neste sentido que Berkeley nega a matéria; isto é, ele não nega que os dados dos sentidos que normalmente consideramos como sinais da existência da mesa sejam realmente sinais da existência de algo independente de nós, mas nega que este algo seja não mental, que não seja a mente ou as idéias concebidas por uma mente. Ele admite que deve haver algo que continue a existir quando abandonamos o aposento ou fechamos os olhos, e que aquilo a que chamamos ver a mesa nos dá razões para crermos em algo que persiste mesmo quando não o estamos a ver. Mas pensa que este algo não pode ter uma natureza radicalmente diferente daquilo que vemos, e que não pode ser completamente independente da visão, embora deva ser independente da nossa visão. É assim levado a olhar a mesa “real” como uma idéia na mente de Deus. Esta idéia tem a permanência e a independência em relação a nós exigidas, sem ser — como de outro modo a matéria seria — algo totalmente incognoscível, no sentido em que a podemos apenas inferir mas nunca podemos ter diretamente e imediatamente consciência dela.
Houve outros filósofos depois de Berkeley a afirmar também que, embora a existência da mesa não dependa dela ser vista por mim, depende de ser vista (ou de algum modo apreendida na sensação) por uma mente — não necessariamente a mente de Deus, mas com maior freqüência a mente coletiva do universo. Como Berkeley, defendem esta posição principalmente porque pensam que não pode existir nada real — ou, em todo o caso, nada que se saiba sê-lo — exceto as mentes com os seus pensamentos e sentimentos. Podemos formular o argumento com que sustentam a sua posição mais ou menos assim: “Tudo o que pode ser pensado é uma idéia na mente da pessoa que a pensa; portanto, só idéias nas mentes podem ser pensadas; portanto, qualquer outra coisa é inconcebível, e o que é inconcebível não pode existir.”
Em minha opinião este argumento é falacioso; e, obviamente, aqueles que o empregam não o expressam de forma tão concisa ou grosseira. Mas válido ou não, o argumento com uma ou outra forma tem sido amplamente usado, e muitos filósofos, talvez a maioria, sustentaram que só as mentes e as suas idéias são reais. A estes filósofos chama-se “idealistas”. Quando explicam a matéria, ou dizem, como Berkeley, que a matéria é de fato apenas uma coleção de idéias, ou dizem, como Leibniz (1646-1716), que o que aparece como matéria é de fato uma coleção de mentes mais ou menos rudimentares.
Mas estes filósofos, embora neguem a matéria enquanto oposta à mente, admitem-na, contudo, noutro sentido. Recordemos as duas questões que fizemos: 1) Existe uma mesa real? 2) Se sim, que espécie de objeto pode ser? Ora, tanto Berkeley como Leibniz admitem que existe uma mesa real, mas Berkeley diz que ela consiste em certas idéias na mente de Deus e Leibniz diz que é uma colônia de almas. Portanto, ambos respondem pela afirmativa à primeira questão e divergem da visão das pessoas comuns apenas na resposta à segunda. Na verdade, quase todos os filósofos parecem concordar com a existência de uma mesa real; quase todos concordam que, por muito que os nossos dados dos sentidos — a cor, a forma, a lisura, etc. — possam depender de nós, a sua ocorrência é, todavia, um sinal de algo que existe independentemente de nós, algo que talvez difira completamente dos nossos dados dos sentidos e, apesar de tudo, seja olhado como a causa desses dados dos sentidos sempre que estamos numa relação apropriada com a mesa real.
Obviamente, este ponto em que os filósofos concordam — a posição de que existe uma mesa real, qualquer que seja a sua natureza — é de importância vital, e vale a pena examinar que razões temos para aceitar esta posição antes de abordarmos a questão da natureza da mesa real. Por este motivo, o próximo capítulo tratará das razões para supormos que existe uma mesa real.
Antes de avançarmos será bom que examinemos brevemente o que descobrimos até agora. Vimos que, se investigarmos um objeto vulgar, do gênero que os sentidos conhecem, o que os sentidos imediatamente nos dizem não é a verdade acerca do objeto em si mesmo, mas apenas a verdade acerca de determinados dados dos sentidos que, tanto quanto podemos ver, dependem das relações entre nós e o objeto. Por conseqüência, o que vemos e sentimos diretamente é apenas uma “aparência”, que acreditamos ser o sinal de uma “realidade” escondida. Mas, se a realidade não é o que aparece, temos maneira de saber se existe uma realidade? E, se sim, temos maneira de descobrir a que é que se assemelha?
Estas questões são desconcertantes e é difícil provar que não são verdadeiras mesmo as hipóteses mais estranhas. Assim, a mesa, que até agora só provocou em nós pensamentos triviais, tornou-se num problema com muitas e surpreendentes possibilidades. A única coisa que sabemos a seu respeito é que não é o que parece. Até agora, além deste modesto resultado, temos toda a liberdade para conjeturar. Leibniz diz-nos que é uma comunidade de almas; Berkeley uma ideia na mente de Deus; a ciência, não menos maravilhosa, uma vasta coleção de cargas elétricas dotadas de movimento violento.
No meio destas possibilidades surpreendentes, a dúvida sugere que talvez não exista nenhuma mesa. Embora a filosofia não possa responder a tantas questões quanto desejaríamos, pode colocar questões que tornam o mundo mais interessante e mostram o estranho e maravilhoso que existe mesmo nas coisas mais vulgares da vida quotidiana.

Niilismo II


O único modo de compreender o niilismo existencial é através da reflexão. O vazio da existência nunca poderia ser demonstrado através da prática, ou apreendido por meio da experiência imediata. Se, por exemplo, reduzíssemos nosso planeta a nada com bomba nuclear, isso não demonstraria coisa alguma. A visão desse planeta despedaçado também não provaria nada. Tal postura destrutiva prática faz pouco sentido, pois equivale a tentar refutar um livro queimando-o. O niilismo existencial se demonstra quando reduzimos o homem a nada, e para isso basta possuir algum talento intelectual aliado à honestidade, pois o esvaziamento da existência é a mera consequência de a entendermos. Não precisamos degolar a humanidade inteira para provar que a vida carece de sentido.
Para reduzir o homem a nada, e compreender que isso demonstra o niilismo existencial, temos de apreender o vazio objetivo da existência — sendo óbvio que, na condição de sujeitos, só podemos fazê-lo subjetivamente. O problema é que, no processo demonstrar que a existência é vazia, somos o próprio vazio que estamos tentando apontar — tentamos explicar que nós próprios não temos explicação. Parece paradoxal, mas não é. Bastará que consigamos entender nós próprios como um fato, e o niilismo se tornará praticamente uma obviedade. Só então perceberemos que o niilismo não é, como a princípio pode parecer, uma postura extremada, envolvendo algum tipo de revolta, mas apenas uma visão honesta e sensata da realidade — uma visão tornada possível em grande parte devido às descobertas científicas modernas. Com algumas definições e explicações simples, podemos chegar a uma noção razoável da ótica apresentada pelo niilismo existencial. Como o argumento é um pouco longo, vamos por partes. Façamos algumas observações preliminares sobre por que o niilismo nos parece algo tão incômodo.
Muitos, por preconceito, têm medo do “vazio da existência”, mas esse medo, em si mesmo, é algo completamente sem sentido, pois equivale a temer aquilo que não existe; o vazio não é uma ameaça positiva. Senão, vejamos: Não existe vida em Vênus. Alguém se sente aterrorizado diante dessa afirmação? Dificilmente. Não existem bancos em Marte. Alguém empalidece diante disso? Também não. Suponhamos, entretanto, que durante todas as nossas vidas houvéssemos trabalhado arduamente, acreditando que todo o nosso esforço seria convertido em dinheiro num banco em Marte. Agora sim nós nos sentiríamos ameaçados pela afirmação de que nesse planeta não há, nunca houve banco algum, pois vivíamos em função disso, acreditávamos nesse suposto dinheiro marciano como aquilo que dava sentido às nossas vidas. Portanto, o que nos aterroriza não é o vazio da existência, ou o vazio de bancos interplanetários — o que nos enche de medo é a possibilidade de descobrir que estávamos completamente equivocados em nossas crenças a respeito da realidade. Seria esmagadora a consciência de havermos dado grande importância, de havermos dedicado nossas vidas inteiras a algo que simplesmente não existe. É por isso que estremecemos diante da afirmação de que a existência não tem sentido, embora essa afirmação seja tão segura quanto a de que não há dinheiro noutros planetas do sistema solar.
Resistimos ao niilismo não porque ele seja falso, mas porque reorganizar nossa visão da realidade seria muito trabalhoso. Então, se colocarmos nossos interesses pessoais de lado, veremos que o que nos inquieta no niilismo é o fato de que ele nos confronta duramente com nossa própria ingenuidade, com o fato de termos nos deixado enganar tão grandiosamente que nossas vidas passaram a depender de mentiras, de suposições imaginárias. Portanto, percebamos que, quando o niilismo aponta essas mentiras, ele não está destruindo a realidade, e sim nossas ilusões. Nessa ótica, o niilismo nada mais é que um exercício de honestidade e imparcialidade, e apenas esvazia a realidade das ficções que nunca existiram de fato. Essa honestidade pode ser dolorosa, mas é um sinal de maturidade. Se a existência, despida de ilusões, nos parece vazia, saibamos ao menos admitir que a culpa é nossa por termos nos enchido delas. Se gostamos de nos enganar, tudo bem. Porém, se nosso interesse for nos tornarmos capazes de lidar com a realidade como adultos, sempre será preferível aceitar a existência tal qual é em si mesma, ainda que isso signifique abrir mão de muitas de nossas crenças mais arraigadas. É preferível viver num mundo sem sentido a acreditar num sentido falso para o mundo, que aponta para lugar nenhum.
Como vemos, a preocupação essencial do niilismo não é descobrir a verdade, mas apontar as mentiras e reconhecer as limitações. Descrever os fatos é o papel da ciência. O niilismo apenas consiste na disciplina de sermos honestos diante desses fatos que observamos, entender e aceitar suas implicações. Nesse sentido, uma das áreas mais afetadas pelo niilismo são as “grandes questões” da existência. Isso porque as respostas para tais questões são, em geral, muito mais óbvias do que pensamos — e muitas vezes inclusive sabemos quais são, mas preferimos continuar acusando a ciência de ser “cega e limitada” para justificar nossos preconceitos.
Afirmamos que tais assuntos são demasiado “profundos” apenas como pretexto para tratá-los superficialmente; dizemos que são “mistérios”, “impossíveis de responder”, apenas porque temos medo das respostas. Outras vezes deixamos essas questões de lado, não para proteger nossas ilusões, mas porque pensamos que investigá-las nos conduziria à loucura. Muito pelo contrário, isso nos conduziria apenas à lucidez, nos permitiria viver com os pés no chão. Mas o que é o chão? Ora, aquilo que está sob nossos pés. O que é o mundo? Ora, é aquilo que temos diante de nossos olhos. O que é o ser? Ora, é aquilo que existe. Em grande parte, o niilismo consiste na rara capacidade ver o óbvio.
Perguntemo-nos, por exemplo, que é o homem? Ora, somos aquilo que parecemos ser: máquinas. Basta consultar qualquer livro de anatomia básica. Não há nada “por detrás”. Esse “por detrás” não passa de uma fantasia. Foi inventado por nós numa tentativa infantil de humanizar a existência. Não obstante, apesar de sabermos perfeitamente bem o que é o homem, ainda assim acreditamos que há na equação um misterioso “algo mais”. Continuamos nos enganando com a noção de “profundidade” do saber, que nos faz querer buscar o “por detrás” do mundo. Ainda mais, que nos faz acreditar que a verdadeira realidade está nesse “por detrás” que, exatamente por ser uma ilusão, equivale a nada.
Quando estudamos o homem como se ele não fosse uma máquina, é claro que não poderíamos chegar a conclusão alguma, pois isso é um absurdo. Seria o mesmo que um rato investigando-se como se não fosse um roedor, julgando que a “razão de ser” de seu dente não pode ser apenas roer queijo. O suposto “sentido íntimo da realidade” que o homem busca a partir de sua subjetividade é o mesmo que esse rato buscaria se tivesse uma inteligência semelhante à nossa, supondo toda uma ordem metafísica “por detrás” do mundo que atribui ao seu dente um “sentido roedor transcendental” que remete ao Queijo Absoluto. Pouco surpreende que a ciência até hoje nunca tenha encontrado aquilo que não existe. A ciência só pode investigar o mundo natural pelo simples fato de que o resto são delírios metafísicos. Abandonar problemas sem sentido não é limitação intrínseca, é sensatez.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Poema de Fernando Pessoa

Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender -
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.

RECOMENDAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO AOS BLOGS

ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE - MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL
PROMOTORIA DA 59ª ZONA ELEITORAL

RECOMENDAÇÃO n° 018/2011

O MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL, através do órgão de execução do MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL em exercício nesta 59ª Zona, no exercício das atribuições que lhe são conferidas pelos artigos 129, inciso IX da Constituição Federal de 1988; 78 e 79 da Lei Complementar nº 75/93 e 64 da Lei Complementar Estadual nº 141/96 e

CONSIDERANDO incumbir ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, nos termos do artigo 127 da Constituição Federal;

CONSIDERANDO que o princípio da moralidade, cristalizado no artigo 37, caput da Constituição Federal, também se aplica às eleições, mesmo na sua fase de preparação;

CONSIDERANDO ser atribuição institucional do Ministério Público promover representações eleitorais por propaganda antecipada e a ação civil de investigação judicial eleitoral para apurar o abuso de poder nas eleições;

CONSIDERANDO que o a Lei nº 9.504/97, em seu artigo 36, estabelece ser a propaganda eleitoral permitida somente após o dia 5 de julho do ano da eleição, neste caso, a partir de 6 de julho de 2012, conforme Resolução n. 23.341/11 do Tribunal Superior Eleitoral;

CONSIDERANDO o §3º do referido artigo de lei estabelecer que a violação do disposto na mencionada norma “sujeitará o responsável pela divulgação da propaganda e, quando comprovado seu prévio conhecimento, o beneficiário, à multa no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais), ou ao equivalente ao custo da propaganda, se este for maior”;

CONSIDERANDO o artigo 3º da Resolução nº 23.191, de 16 de dezembro de 2009 do Tribunal Superior Eleitoral estabelecer que, para as eleições de 2010, a propaganda eleitoral somente seria permitida a partir de 6 de julho de 2010, vedado qualquer tipo de propaganda política paga no rádio ou na televisão (Lei nº 9.504/97, art. 36, caput e §2º);

CONSIDERANDO a Resolução nº 23.341, Instrução nº 933-81.2011.6.00.0000 – Classe 19 – Brasília – Distrito Federal, do Tribunal Superior Eleitoral, que estatui o calendário para as eleições de 2012, dispor que 6 de julho – sexta-feira, é a “data a partir da qual será permitida a propaganda eleitoral (Lei nº 9.504/97, art. 36, caput)” e “a partir da qual os candidatos, os partidos políticos ou as coligações poderão realizar comícios e utilizar aparelhagem de sonorização fixa, das 8 horas às 24 horas (Lei no 9.504/97, art. 39, §4°)”, bem como “a partir da qual os partidos políticos registrados podem fazer funcionar, das 8 horas às 22 horas, alto-falantes ou amplificadores de som, nas suas sedes ou em veículos (Lei nº 9.504/97, art. 39, §3º).”

CONSIDERANDO a Resolução nº 23.191/10, de 31/12/09, do Tribunal Superior Eleitoral, prescrever que “a representação relativa à propaganda irregular deve ser instruída com prova da autoria ou do prévio conhecimento do beneficiário, caso este não seja por ela responsável”, acrescentando que a “responsabilidade do candidato estará demonstrada se este, intimado da existência da propaganda irregular, não providenciar, no prazo de 48 horas, sua retirada ou regularização e, ainda, se as circunstâncias e as peculiaridades do caso específico revelarem a impossibilidade de o beneficiário não ter tido conhecimento da propaganda”;

CONSIDERANDO que o direito à livre manifestação do pensamento não é absoluto, encontrando limites na seara eleitoral, nas vedações de veiculação de propaganda eleitoral antecipada dentre outras previstas na legislação de regência;

CONSIDERANDO que constitui ato de propaganda eleitoral aquele que leva ao conhecimento geral, ainda que de forma dissimulada, a candidatura, a ação política ou as razões que levem a inferir que o beneficiário seja o mais ou menos apto para a função pública;

CONSIDERANDO, ademais, que o Ministério Público Eleitoral tomou conhecimento de que vários “Blogs”, cujos proprietários são do Município de Jardim de Piranhas-RN, vêm fazendo alusão à “pré-candidaturas” de pretensos candidatos a cargos políticos nas eleições municipais vindouras de 2012;

CONSIDERANDO, outrossim, que o “Blog do Jarles Cavalcanti” está promovendo uma enquete para escolher o pretenso candidatos a vereadores e a vice-prefeito na eleições de 2012 para o Município de Jardim de Piranhas-RN;

RESOLVE RECOMENDAR:

1. AOS PROPRIETÁRIOS DE BLOGS DO MUNICÍPIO DE JARDIM DE PIRANHAS:
1.1)  A observância do disposto na legislação eleitoral, em especial no que se refere à vedação de propaganda eleitoral extemporânea, notadamente do art. 36 da Lei das Eleições, que só permite a propaganda eleitoral a partir do dia 5 (cinco) de julho do ano da eleição.
1.2) Que se abstenham de veicular propaganda de qualquer natureza em seus “blogs”, seja de forma positiva (enaltecendo as qualidades de  pretenso candidato), seja de forma negativa (evidenciando os motivos pelos quais não de deve votar em determinada pessoa), sob pena de se caracterizar propaganda eleitoral antecipada;
1.3) Que se abstenham de mencionar a existência de “chapas” para as candidaturas vindouras nas eleições de 2012;
1.4) Que se abstenham de realizar “enquetes” para a escolha de pretensos candidatos a determinados cargos
1.5) Que publiquem na página inicial de seus “blogs” esta recomendação a qual deverá permanecer visível durante 10(dez) dias.

2. AO PROPRIETÁRIO DO BLOG “JARLES CAVALCANTI”:
2.1) Que retire, imediatamente, da página de seu “blog”, as enquetes ali existentes e que visam obter opinião dos internautas sobre quem serão os pretensos candidatos a vereadores e vice-prefeito nas eleições de 2012 neste Município, sob pena de caracterização de propaganda antecipada com a aplicação das sanções cabíveis;

Encaminhe-se a presente Recomendação para que seja publicada no Diário Oficial do Estado, bem como se remetam cópias à CGMP, ao Procurador Regional Eleitoral, ao Juiz desta zona e aos proprietários dos Blogs residentes neste Município.

Solicite-se, outrossim, a divulgação da presente Recomendação através da imprensa local (rádio FM), a fim de que surta os efeitos esperados.

Junte-se cópia desta Recomendação aos autos do Procedimento Preparatório nº 011/2011.

Jardim de Piranhas/RN, 16 de setembro de 2011.

HAYSSA KYRIE MEDEIROS JARDIM
                               Promotora Eleitoral da 59ª Zona

Niilismo I


O niilismo pode ser definido como a implosão da subjetividade. Alternativamente, e sendo um pouco mais claros, podemos defini-lo como uma descrença em qualquer fundamentação metafísica para a existência humana. Não se trata, entretanto, de algo difícil de ser definido, mas de ser apreendido. Por ser uma noção bastante ampla e abstrata, existe muita confusão em torno dela. Vejamos alguns dos principais motivos disso. Primeiro, o niilismo é vago em si mesmo, pois vem de nihil, que significa nada. A palavra niilismo, que poderia ser traduzida como “nadismo”, de imediato, não nos dá qualquer idéia do que se trata. Segundo, o niilismo não possui qualquer conteúdo positivo. Por se tratar de uma postura negativa, só conseguiremos entendê-la depois que tivermos consciência do que ela nega, e por isso a compreensão do niilismo envolve muitos outros conceitos; ele só se tornará visível depois que esboçarmos seu contexto. Por fim, o niilismo também não recebeu, historicamente, um emprego consistente, sendo que cada pensador ou movimento o interpretou de modo bastante particular, quase sempre com um pano de fundo ideológico, na tentativa míope de justificar um niilismo ativo e militante.
Em geral, vemos o niilismo associado a outras idéias, denotando seu vazio inerente. Por exemplo, niilismo político seria mais ou menos equivalente ao anarquismo, repudiando a crença de que este ou aquele sistema político nos conduziria ao progresso, o qual não passaria de um sonho mentiroso. O niilismo moral equivaleria à negação da existência de referenciais morais objetivos, ou seja, de valores bons ou maus em si mesmos. O niilismo epistemológico, por sua vez, seria a afirmação de que nada pode ser conhecido ou comunicado. Portanto, vemos que associar qualquer noção ao niilismo não é exatamente um elogio, mas algo como colocar ao seu lado uma placa dizendo: aqui não há nada — principalmente nada do que se acredita haver.
O niilismo, todavia, não é só um termo que justapomos a qualquer idéia que nos desagrade, a fim de desmerecê-la. Seu poder de apontar o vazio das coisas não pode ser usado como uma arma, pois, quando se dispara o tiro de nada, automaticamente deixa de existir a arma, e a coisa toda perde o sentido. O niilismo, sendo um processo radical de crítica, não pode ser usado parcialmente. Não podemos, por exemplo, usar o niilismo moral para refutar valores específicos, com os quais não simpatizamos, imaginando que os nossos próprios valores sobreviveriam à crítica. Quando afirmamos que a moral não existe, isso implica que não existem quaisquer valores, sejam os nossos valores, sejam os de nossos oponentes. Com o niilismo moral, toda a moral é reduzida a nada, inclusive a nossa. A redução da moral a nada, como vemos, está respaldada não na gramática, mas na suposição de que a moral é vazia em si mesma, de que ela não tem fundamentos reais e objetivos. Não se trata de simpatizarmos ou não com a moral, mas da constatação segundo a qual ela é um sonho, uma fantasmagoria inventada por nós próprios, não sendo leis morais, portanto, mais relevantes que leis de trânsito.
Nós, entretanto, nos ocuparemos principalmente do niilismo existencial, ou seja, a postura segundo a qual a existência, em si mesma, não tem qualquer fundamento, valor, sentido ou finalidade. Segundo o niilismo existencial, tudo o que existe carece de propósito, inclusive a vida. Todas as ações, todos os sentimentos, todos os fatos são vazios em si mesmos, desprovidos de qualquer significado. Nessa ótica, viver é algo tão sem sentido quanto morrer, e estamos aqui pelo mesmo motivo que as pedras: nenhum. Essa parece ser a categoria mais fundamental de niilismo, em relação à qual os demais tipos tomam o aspecto de casos particulares. Os niilismos moral e político, por exemplo, podem claramente ser deduzidos do niilismo existencial — pois, se a própria existência não tem valor, isso implica que nada tem valor, inclusive valores morais, inclusive o progresso.