De um lado estão aqueles que defendem a vida como bem supremo. De outro, os que sustentam a liberdade de escolha como direito inerente. Por trás deste embate está um pensamento dualista que opõe vida e morte e não distingue viver de sobreviver
Por Scarlett Marton
Defensores da eutanásia, por sua vez, argumentam em favor do direito de morrer. Usa-se, atualmente, esta expressão para remeter a situações variadas; a ela se recorre inclusive para referir-se ao direito do paciente de recusar-se às terapias que julgue inapropriadas ou inoportunas e de solicitar medicamentos que lhe aliviem as dores ainda que corram o risco de abreviar-lhe a vida.
O direito de morrer se basearia antes de qualquer coisa no princípio de autonomia. Toda pessoa tem o direito de tomar decisões acerca da própria vida; é capaz de decidir o que ela quer fazer e o que quer que outrem lhe faça. Não cabe, pois, à lei vir tolher tal direito nem limitar a sua liberdade; ninguém sabe melhor do que ela o que lhe convém.
Este mesmo argumento valeria para o aborto provocado e para o suicídio; constituiria um desrespeito ao princípio de autonomia penalizar criminalmente quem decidisse provocar um aborto ou tentasse o suicídio. Assim, toda pessoa gozaria, dentre os seus direitos, do privilégio de dispor de sua existência em quaisquer circunstâncias, desde que, por livre e espontânea vontade, desistisse de viver.
E ainda mais nos casos de doença incurável, acrescida de dores insuportáveis e sofrimentos inúteis. Há quem argumente, porém, que uma coisa é deixar morrer e outra é matar. Entendem por matar qualquer ação ou omissão que vise a pôr termo à vida; e entendem por deixar morrer a não aplicação ou interrupção de um tratamento desproporcional e oneroso, de modo que a natureza possa seguir o seu curso.
Dessa perspectiva, a ortotanásia seria admissível, mas a eutanásia intolerável. Em que pese a atuação de grupos que hoje reivindicam, em vários países, mudanças legais que permitam a sua prática, tendo em vista sempre a eutanásia voluntária, não haveria por que descriminalizá-la.
Importa frisar que, ao distinguir entre matar e deixar morrer, parte-se mais uma vez deste dualismo primeiro, que opõe a vida à morte. Por isso mesmo, torna-se preciso investigar mais de perto o que está em causa quando se fala da vida. E, ainda que o apelo às definições possa parecer, aos olhos de alguns, uma exigência escolar, é imprescindível recorrer a elas para situar o terreno em que se dá a discussão.
Aqui, uma distinção se faz necessária: a que se estabelece entre viver e sobreviver. Lançando mão do pensamento de Nietzsche, não seria desmedido dizer que é a vida, ela mesma, que, vencida, se reduz à sobrevivência, quando não suporta a doença nem tolera a dor. Dessa óptica, apressar a morte de um paciente incurável e em terrível sofrimento, atendendo à sua vontade expressa e manifesta, não equivaleria a tirar-lhe a vida, mas a abreviar-lhe a sobrevivência.
Estudiosos colocam, em outros termos, essa questão, ao distinguir entre estar vivo, no sentido biológico da palavra, e ter vida, na acepção biográfica da expressão. Sustentam que a saúde do paciente não se limita à dimensão físicocorporal de sua existência, mas abrange também seu estilo de vida, seus valores e suas crenças.
Advogam a ideia de que a conduta médica deve levar em conta essas duas dimensões e empenhar-se em aliar a processos da natureza biológica a dignidade de uma história pessoal. Nesse contexto, matar não significaria pôr fim ao estar vivo, mas pôr termo à vida.
Suicídio, de Édouard Manet. A eutanásia é vista por muitos como um suicídio assistido, já que aquele que deseja pôr fim à própria vida não tem condições de fazê-lo sozinho e conta com a ajuda de outro
Ao trabalhar com duas dimensões da existência humana, essa maneira de ver acaba por pensar o homem como um composto de corpo e mente, aceitando, assim, a distinção que Descartes estabeleceu entre pensamento (res cogitans) e matéria (res extensa).
Enquanto aqui se trata de tentar juntar o que Descartes havia separado, no quadro do pensamento de Nietzsche importa antes de qualquer coisa recusar todo e qualquer dualismo. Em todo caso, tanto a distinção entre ter vida e estar vivo quanto aquela outra entre viver e sobreviver nos remete à questão acerca da qualidade de vida
Para Nietzsche, não é desmedido dizer que é a vida, ela mesma, que, vencida, se reduz à sobrevivência, quando não suporta a doença nem tolera a dor
Num mundo marcado pela crise de valores, amplia-se o debate entre os que advogam o caráter sagrado da existência humana e os que defendem os seus aspectos qualitativos. Enquanto uns julgam que a medicina tem de estar a serviço da vida, outros entendem que ela deve prezar antes de tudo a pessoa. Se aqueles condenam a eutanásia, estes podem vir a admiti-la.
A palavra eutanásia foi introduzida pelo filósofo Francis Bacon (1561-1626), no seu Organon (1623), com o sentido de "boa morte" - suave e sem sofrimento. Não está ligada à acepção atual
Cabe lembrar, porém, que é a partir dos anos 1970 que a questão da qualidade de vida se impõe. Entre nós, sua emergência coincide com o momento em que a medicina de ponta começa a migrar da esfera pública para o setor privado.
Os hospitais beneficentes, que eram praticamente os únicos centros de excelência no País, cedem lugar às empresas de saúde. Com a crescente incorporação tecnológica, deixa-se de conceber a medicina como um serviço a ser prestado; passa-se a vê-la como um negócio a ser realizado.
De ação filantrópica, ela converte- se em contrato comercial. Torna-se comum discutir, nas ações médicas, a relação de custo e benefício. Entende-se por custos de uma determinada intervenção, antes de qualquer coisa, os financeiros, não se levando em conta os emocionais e psicológicos, os sociais e éticos que possam dela advir.
Entende-se por benefícios acima de tudo os percebidos pela empresa de saúde, relegando-se a segundo plano os que possam reverter para o paciente, os familiares e amigos, os grupos e segmentos sociais. Fazendo- se do paciente um cliente, a ele se oferece, como bens de consumo, a saúde e até mesmo a vida. Aprofunda-se, assim, o abismo que separa saúde e doença, vida e morte.
Prezados Senhores, boa tarde, tenho 78 anos e sou a favor da Eutanásia, e pretendo lutar para que seja legalizada, mas é preciso que tenha muitas outras pessoas com a mesma liberdade de pensamentos. É um assunto delicado e complexo. Selva Freitas
ResponderExcluir