Por João de Fernandes Teixeira
O título desta coluna é também a do livro clássico de Henri Bergson (1859-1941). Publicado em 1896, Matéria e Memória interessa aos filósofos da mente por sua rejeição ao reducionismo. Aliás, toda Filosofia bergsoniana caminha na direção de rejeitar essa visão, segundo a qual nossas sensações e estados mentais seriam meras traduções da movimentação das moléculas no cérebro.
É nesse livro em especial e em algumas outras passagens de sua obra que Bergson ataca o problema da relação entre mente e cérebro pela irredutibilidade da memória ao corpo. Para isso, ele precisa avançar contra uma concepção corrente de memória, típica da Psicologia popular, segundo a qual ela é o armazenamento de percepções no cérebro, ou seja, a uma idéia do cérebro como arquivo de lembranças.
Quando começamos a perder a memória estamos, na verdade, enfrentando problemas de acesso a ela. Em nenhum momento ela desaparece. Bergson também argumenta que as lesões cerebrais tampouco destroem as lembranças supostamente localizadas na região lesada; elas podem simplesmente comprometer as ações necessárias ao seu acesso.
Um caso curioso mencionado por Bergson contra a hipótese do cérebro-arquivo é o de um paciente que se esquece somente da letra "f". O fato de apenas a letra "f" ter sido esquecida não indica que ela foi apagada. Ao contrário, abstrair o "f" em todas as palavras escritas ou faladas sugere que há um reconhecimento implícito dessa letra e que de alguma forma ela continua na memória.
Ainda usando exemplos que envolvem peculiaridades sobre a memória para fundamentar seu antirreducionismo, Bergson cita o caso do indivíduo que foi progressivamente perdendo sua memória, mas de acordo com a ordem estabelecida pela gramática. Primeiro vieram os substantivos, depois os adjetivos, e assim por diante. Como a degeneração física do cérebro poderia obedecer à gramática?
Bergson menciona esse caso como mais uma maneira de enfatizar o seu antirreducionismo mostrando como a memória pode manifestar assimetrias entre mente e cérebro. Anos mais tarde, Wittgenstein (1889-1951) também identificaria uma dessas assimetrias, afirmando nas suas Zettel que a memória "é uma regularidade psicológica à qual não corresponde nenhuma regularidade fisiológica".
Outro filósofo - quase contemporâneo a Bergson, mas de uma tradição completamente diferente que também se ocupou do tema da memória foi Norman Malcolm (1911-1990). Ele foi discípulo e amigo de Wittgenstein. Malcolm, que cita Bergson, também critica a idéia de memória como estoque. Mas essa parece ser uma idéia profundamente entranhada na literatura neurocientífca há muito tempo. Basta ver, por exemplo, o ensaio de Freud O bloco maravilhoso, de 1924. Nele está implícita a questão do estoque, de saber como é possível gravar uma quantidade tão formidável de lembranças num espaço tão pequeno. A mesma preocupação encontra-se em pesquisadores mais recentes, como, por exemplo, o neurobiólogo Karl utilizando um modelo holográfico chegou a propor que nosso cérebro pode ser mesmo um imenso reservatório contido num espaço diminuto.
Para Bergson memória é retenção, e o que precisa ser explicado são os processos de supressão ou desaparecimento de lembranças
Malcolm aponta que a Neurociência até agora confundiu a idéia de estocagem com a de retenção, que são semelhantes, mas distintas. Seu exemplo parece ser bem claro. Quando troco alguns móveis da minha sala de estar, mas mantenho a mesa de minha avó, estou retendo-a. Isso é diferente de colocá-la no sótão, que seria estocá-la. Essa mesma diferença deveria ser aplicada ao caso da memória.
Mas será que no amnésico gramatical de que nos fala Bergson, a ordem cerebral não poderia simplesmente coincidir com a ordem da gramática e isso justificaria a possibilidade de sustentarmos a existência de uma degeneração ordenada sem, no entanto, que isso implique uma assimetria entre mental e cerebral? Estudos mais recentes com neuroimagem vêm tentando mostrar que o mapa de nossas funções cognitivas e o mapa de nosso cérebro são isomórficos. A Ciência cognitiva sugere que a sintaxe está gravada no cérebro. Nesse caso, Bergson poderia não estar certo e a razão do desaparecimento de lembranças na ordem gramatical poderia ser explicada a partir de um modelo neurocognitivo.
Baseando-se nessa ideia, a Neurociência atual busca incessantemente o lugar da memória no cérebro, como se em alguns pontos dele houvesse algo parecido com transcrições neuronais de lembranças. Mas essa busca por marcas de memória tem sido malsucedida. Uma das dificuldades é que, do ponto de vista químico, a gravação e supressão de lembranças é um processo idêntico, o que dificultaria a identificação de quando essas transcrições estariam ocorrendo.
Malcolm chega a sugerir que o que chamamos de memória é um jogo de linguagem que cria não apenas a idéia de um lugar virtual no cérebro onde as lembranças estariam estocadas, como também criaria uma ilusão temporal, ou um tempo virtual em sentido contrário, como se a mente pudesse retroceder ao passado. Mas a memória é um passado que ocorre sempre agora, pois os processos mentais ocorrem sempre no presente, em tempo real. A memória não é uma camada no tempo, mas apenas uma maneira específica de falar de coisas no presente, usando um jogo de linguagem específica. Memória e percepção estão muito próximas...
Claro que essa é uma concepção que se choca frontalmente com o conceito de memória da Neurociência contemporânea e, sobretudo, com o nosso senso comum. Mas no caso de Bergson não é isso o que ocorre. Seu modelo de memória se mantém atual na Neurociência contemporânea. Sua crítica à idéia de memória como reservatório cerebral e de uma memória que não desaparece é compatível a um modelo defendido por vários neurocientistas contemporâneos, entre os quais o brasileiro Ivan Izquierdo. Nesse modelo, memória é retenção, e o que precisa ser explicado são os processos de supressão ou desaparecimento de lembranças. É o inverso do modelo do estoque, que mesmo assim mostra que temos muito mais lembranças do que nosso cérebro pode acomodar (com exceção, talvez, de Funes, o memorioso, personagem de Jorge Luis Borges que se lembrava de tudo...).
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