Sustentado o mundo no pilar de Deus, Descartes irá tratar das coisas físicas. A questão que o ocupa é a de saber qual é a natureza das coisas físicas. Para isso, sujeita à nossa consideração o seguinte exemplo. Temos um pedaço de cera com uma certa forma, tamanho, cor, perfume; através dos sentidos, temos experiência destas propriedades; mas se o aproximares do fogo, estas propriedades alteram-se, embora o pedaço de cera seja o mesmo. Logo, estas propriedades não pertencem à natureza ou essência da cera. Isto quer dizer que a experiência não me permite captar a essência da cera e o mesmo sucede com qualquer outra coisa física. Deste modo, só o raciocínio descobre a essência da cera; assim, a cera muda de forma, tamanho, cor, perfume e o mesmo se dirá de qualquer outra propriedade de que temos experiência através dos sentidos; mas se deixar de ser uma coisa extensa no espaço deixará de ser o que é. Logo, a extensão pertence à sua essência e à de qualquer outra coisa física.
O que fazer a partir daqui? Que coisas podemos saber acerca do mundo exterior e de que modo adquirimos esse conhecimento? Partindo desta descoberta metafísica, Descartes recorre à imutabilidade de Deus para estabelecer as leis básicas da física. Parece seguro dizer que a imutabilidade de Deus impõe algumas restrições ao que estas leis deviam ser. Assim, as duas primeiras leis da física, que são leis do movimento, são as que têm uma conexão mais íntima com a imutabilidade de Deus. A primeira diz que um corpo permanece no estado em que se encontra, a menos que alguma coisa o altere; e a segunda diz que um corpo em movimento, se as condições se mantiverem, continua a mover-se em linha Rita, o que antecipa a lei da inércia retilínea de Newton. À medida que o conhecimento progride a partir destas leis básicas, mais necessária se torna a observação e a experiência. Como leis alternativas podem ser deduzidas das leis básicas, a experiência será indispensável para se decidir qual delas exprime o mecanismo de que resulta um determinado fenômeno. É assim abusivo atribuir a Descartes a idéia de que estas leis podem ser deduzidas da natureza de Deus através de um raciocínio puramente lógico.
Esta descoberta metafísica de que toda a matéria é extensão contribui para derrubar a concepção aristotélica de natureza. Segundo esta concepção, os céus não são feitos da mesma matéria que a Terra; além disso, a matéria dos céus tem um grau de perfeição superior à matéria da Terra. Como esta extensão é homogênea, não há lugar para matérias diferentes e graus diferentes de perfeição. Estão assim criadas as condições para que se unifique a explicação astronômica dos céus e a explicação mecânica da Terra. Um mundo que na sua essência é extensão tridimensional só é conhecível através de uma física matematizada. Nesta física não há definitivamente lugar para noções qualitativas, como a de graus de perfeição. E também parece não haver para as noções qualitativas e pré-filosóficas do homem comum; este, apesar de ter experiência de fenômenos como a gravidade e relações entre massas, tempos e velocidades, não está em condições de os explicar de maneira objetiva.
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