segunda-feira, 28 de maio de 2012

DESCARTES – AS PAIXÕES DA ALMA


Art. 20. Das imaginações e outros pensamentos que são formados pela alma.
Quando nossa alma se aplica a imaginar alguma coisa que não existe2 6, coino a representar um palácio encantado ou uma quimera, e também quando se aplica a considerar algo que é omente inteligível e não imaginável, por exemplo a sua própria natureza, as percepções que tem dessas coisas dependem principalmente da vontade que a leva a percebê-las; eis por que se costuma considerá-las como ações mais do que como paixões2 7.
Art. 21. Das imaginações que só têm por causa o corpo.
Entre as percepções que são causadas pelo corpo, a maior parte depende dos nervos; mas há também algumas que deles não dependem, e que se chamam imaginações28, como essas de que acabo de falar, das quais, não obstante, diferem pelo fato de nossa vontade não se empenhar em formá-las, o que faz com que não possam ser incluídas no número das ações da alma, e procedam apenas de que, sendo os espíritos diversamente agitados, e encontrando os traços de diversas impressões que precederam no cérebro, tomem aí seu curso fortuitamente por certos poros mais do que por outros. Tais são as ilusões de nossos sonhos e também os devaneios a que nos entregamos muitas vezes estando despertos, quando nosso pensamento erra negligentemente sem se aplicar por si mesmo a nada29. Ora, ainda que algumas dessas imaginações sejam paixões da alma, tomando a palavra na sua mais própria e mais perfeita significação, e ainda que possam ser todas assim denominadas, se se tomar o termo em uma acepção mais geral, todavia, posto que não têm uma causa tão notável e tão determinada como as percepções que a alma recebe por intermédio dos nervos, e parecem ser apenas a sombra e a pintura destas, antes que as possamos distinguir bem cumpre considerar a diferença que há entre estas outras.
Art. 22. Da diferença que existe entre as outras percepções.
Todas as percepções que ainda não expliquei vêm à alma por intermédio dos nervos30, e existe entre elas essa diferença pelo fato de relacionarmos umas aos objetos de fora, que ferem nossos sentidos, e as outras ao nosso corpo ou a algumas de suas partes, e outras enfim à nossa alma. Art. 23. Das percepções que relacionamos com os objetos que existem fora de nós. As que referimos a coisas situadas fora de nós, a saber, aos objetos de nossos sentidos, são causadas, ao menos quando nossa opinião não é falsa, por esses objetos que, rovocando alguns movimentos nos órgãos dos sentidos externos, os provocam também no cérebro por intermédio dos nervos, os quais levam a alma a senti-los. Assim, quando vemos a luz de um facho e ouvimos o som de um sino, esse som e essa luz são duas ações diversas que, somente por excitarem dois movimentos diversos em alguns de nossos nervos, e por meio deles no cérebro, dão à alma dois sentimentos diferentes, os quais relacionamos de tal modo aos objetos que supomos serem sua causa, que pensamos ver o próprio facho e ouvir o sino, e não sentir unicamente movimentos que procedem deles31.
Art. 24. Das percepções que relacionamos com o nosso corpo.
As percepções que relacionamos com o nosso corpo ou com qualquer de suas partes são as que temos da fome, da sede e de nossos demais apetites naturais, aos quais podemos juntar a dor, o calor e as outras afecções que sentimos como nos nossos membros, e não como nos objetos que existem fora de nós: assim, podemos sentir ao mesmo tempo, e por intermédio dos mesmos nervos, a frieza da nossa mão e o calor da chama de que ela se aproxima, ou então, ao contrário, o calor da mão e o frio do ar a que está exposta, sem que haja qualquer diferença entre as ações que nos fazem sentir o quente ou o frio que existe em nossa mão e as que nos fazem sentir aquele que está fora de nós, a não ser que, sucedendo uma dessas ações à outra julguemos que a primeira já existe em nós e que a outra, a seguinte, não está ainda em nós, mas no objeto que a causa.
Art. 25. Das percepções que relacionamos com a nossa alma32.
As percepções que se referem somente à alma são aquelas cujos efeitos se sentem como na alma mesma e de que não se conhece comumente nenhuma causa próxima à qual possamos relacioná-las: tais são os sentimentos de alegria, de cólera e outros semelhantes, que são às vezes excitados em nós pelos objetos que movem nossos nervos, e outras vezes também por outras causas. Ora, ainda que todas as nossas percepções, tanto as que se referem aos objetos que estão fora de nós como as que se referem às diversas afecções de nosso corpo, sejam verdadeiramente paixões com respeito à nossa alma, quando tomamos esse termo em sua significação mais geral, todavia costuma-se restringi-lo a fim de significar somente as que se relacionam com a própria alma, e apenas essas últimas é que me propus explicar aqui sob o nome de paixões da alma

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