domingo, 20 de maio de 2012

O Ser no Mundo na Psicopatologia - ÚLTIMA PARTE


A perspectiva do ser-em é, acreditamos, o traço essencial da psicopatologia existencial, tal como a encontramos na obra de Binswanger. Mas esse traço distintivo talvez seja ao mesmo tempo o fator responsável por suas dificuldades. Em primeiro lugar, o paradigma da existência não pode ser "operacionalizado" sem descaracterizar-se de modo significativo. A noção de ser-em viabiliza uma visão total da existência, e desse modo essa noção não é passível de ser tematizada como uma realidade circunscrita e objetiva. Nisto consiste, possivelmente, a dificuldade de sua "aplicação". Algumas vezes, por exemplo, as análises de Binswanger parecem esbarrar num meio caminho entre dois extremos, a saber, entre a fecundidade da analítica heideggeriana do dasein (que é o seu ponto de partida) e a objetividade da psicopatologia enquanto ciência - tomando-se, por conseqüência, empobrecedoras em relação à primeira e vagas em relação à segunda.
Por outro lado, não se poderia exigir que a daseinsanalyse explicasse por que ocorrem "distorsões" na estrutura "normal" do ser no mundo. Essas distorsões, de qualquer modo, são possibilidades inerentes ao ser da presença. E mesmo que se identifiquem "causas", sejam orgânicas ou não (e elas podem de fato ser identificadas), e ainda que a abordagem existencial possa tomá-las em consideração, tal identificação não afeta sua visão do fenômeno. É nesse sentido que se diz que a noção de existência está aquém do plano dos fatos objetivos observados pela ciência. Esta não é uma limitação do pensamento existencial, é ao contrário o seu valor. A "idéia" básica da fenomenologia não consiste apenas em inserir um mundo de aparências (as coisas tal como elas aparecem) nos meandros de um mundo "real". Essa idéia é muito mais fundamental, e consiste em afirmar que é o nível "do vivido ou do fenomenal que se trata precisamente de justificar e reabilitar como fundamento do nível objetivo." (Merleau-Ponty, 1992:195-6) De acordo com essa idéia, o campo fenomenal da experiência vivida, da inserção em um mundo, é aquele que dá sentido à existência de certos fatos objetivos isolados. Nessa linha, Binswanger, após identificar a "essência antropológica" de uma enfermidade, passa a reexaminar os conhecimentos estabelecidos a respeito do comportamento anormal em estudo para, por assim dizer, corrigi-los.
Uma outra dificuldade das análises de Binswanger diz respeito ao método empregado. Ora, vimos, com Heidegger, que o ser no mundo é um a priori existencial (isto é, um a priori que não é "apriorístico" no sentido de ser anterior à experiência). E dissemos acima que a enfermidade pode sempre ser compreendida no plano do ser no mundo, no modo em que ela se existencialmente, sem que seja necessário recorrer ao nível das causas objetivas (mas sem que seja proibido fazê-lo). Com efeito, é interessante na perspectiva existencial a visualização do comportamento como atitude geral, como movimentação total da existência em um mundo. Essa visualização de modo algum é incompatível com o estudo objetivo do comportamento e de sua gênese8. Mas uma conseqüência desse "recorte" do comportamento talvez seja a linguagem metafórica e imprecisa de que se lança mão para apreendê-lo. Esse tipo de linguagem, contudo, se justifica (embora Binswanger não o afirme expressamente) justamente por visar o ser-em, e porque este não pode ser definido e avaliado "segundo sinais objetivos". Os fenômenos psicopatológicos, enquanto modalidades existenciais, não podem ser apreendidos como realidades substanciais e inconfundíveis. É interessante a posição de Binswanger quanto a esse problema: "Naturalmente, é preciso ter em mente aí que, ao perguntarmos se um determinado fato 'pertence' a uma essência, muitas vezes se trata de uma questão puramente 'de tato', ou seja, de uma questão do domínio da experiência fenomenológica, que não é diferente da questão se determinada obra de arte linguística pertence à essência artística da poesia lírica, épica ou dramática, não importando a nitidez com que essas essências possam ser contrastadas enquanto tais. (...) Assim como no domínio da arte, também na análise existencial, as definições rígidas devem ser consideradas como obstáculos para a pesquisa". (Binswanger, 1977: 97-8).
Desse modo, a linguagem metafórica e o caráter abrangente de muitos conceitos utilizados por Binswanger estão em correlação com o tipo de fenômeno visado. A relevância teórica do paradigma da existência na psicopatologia e na psicologia, ao menos em parte, deve ser avaliada de acordo com a importância que possa ter, para a compreensão do comportamento humano, a noção de ser-em, entre outras. A importância da abordagem existencial reside, a nosso ver, no alcance que pode trazer à compreensão da experiência humana, e também no fato de ser um paradigma de investigação científica atento aos fundamentos ontológicos da realidade.

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