quarta-feira, 30 de maio de 2012

DESCARTES – AS PAIXÕES DA ALMA


Art. 31. Que há uma pequena glândula no cérebro, na qual a alma exerce suas funções mais particularmente do que nas outras partes.
É necessário também saber que, embora a alma esteja unida a todo o corpo, não obstante há nele alguma parte em que ela exerce suas funções mais particularmente do que em todas as outras43; e crê-se comumente que esta parte é o cérebro, ou talvez o coração: o cérebro, porque é com ele que se relacionam os órgãos dos sentidos; e o coração, porque é nele que parece sentirem-se as paixões. Mas, examinando o caso com cuidado, parece-me ter reconhecido com evidência que a parte do corpo em que a alma exerce imediatamente suas funções não é de modo algum o coração, nem o cérebro todo 4 4, mas somente a mais interior de suas partes, que é certa glândula muito pequejia, situada no meio de sua substância, e de tal modo suspensa por cima do conduto por onde os espíritos de suas cavidades anteriores mantêm comunicação com os da posterior, que os menores movimentos que nela existem podem contribuir muito para modificar o curso desses espíritos, e, reciprocamente, as menores modificações que sobrevêm ao curso dos espíritos podem contribuir muito para alterar os movimentos dessa glândula4 5.
Art. 32. Como se conhece que essa glândula é a principal sede da alma.
A razão que me persuade de que a alma não pode ter, em todo o corpo, nenhum outro lugar, exceto essa glândula, onde exerce imediatamente suas funções é que considero que as outras partes do nosso cérebro são todas duplas, assim como tempos dois olhos, duas mãos, duas orelhas, e enfim todos os órgãos de nossos sentidos externos são duplos; e que, dado que não temos senão um único e simples pensamento de uma mesma coisa ao mesmo tempo, cumpre necessariamente que haja algum lugar onde as duas imagens que nos vêm pelos dois olhos, onde as duas outras impressões que recebemos de um só objeto pelos duplos órgãos dos outros sentidos, se possam reunir em uma antes que cheguem à alma, a fim de que não lhe representem dois obje-tos em vez de um só. E pode-se conceber facilmente que essas imagens ou outras impressões se reúnem nessa glândula, por intermédio dos espíritos que preenchem as cavidades do cérebro, mas não há qualquer outro local no corpo onde possam assim unir-se, senão depois de reunidas nessa glândula46.
Art. 33. Que a sede das paixões não fica no coração.
Quanto à opinião dos que pensam que a alma recebe as suas paixões no coração, não pode ser de modo algum considerável, pois se funda apenas no fato de que as paixões nos fazem sentir aí alguma alteração 4 7; e é fácil notar que essa alteração só é sentida, como que no coração, por intermédio de um pequeno nervo que desce do cérebro para ele, assim como a dor é sentida como que no pé, por intermédio dos nervos do pé, e os astros são percebidos como que no céu por intermédio de sua luz e dos nervos ópticos; de sorte que não é mais necessário que nossa alma exerça imediatamente as suas funções no coração para nele sentir as suas paixões do que é necessário que ela esteja no céu para nele ver os astros.
Art. 34. Como agem a alma e o corpo um contra o outro.
Concebamos, pois, que a alma tem a sua sede principal na pequena glândula que existe no meio do cérebro, de onde irradia para todo o resto do corpo, por intermédio dos espíritos, dos nervos e mesmo do sangue, que, participando das impressões dos espíritos, podem levá-los pelas artérias a todos os membros; e, lembrando-nos do que já foi dito acima com respeito à máquina de nosso corpo, a saber, que os pequenos filetes de nossos nervos acham-se de tal modo distribuídos em todas as suas partes que, por ocasião dos diversos movimentos aí provocados pelos objetos sensíveis, abrem diversamente os poros do cérebro, o que faz com que os espíritos animais contidos nessas cavidades entrem diversamente nos músculos, por meio do que podem mover os membros de todas as diversas maneiras que esses são capazes de ser movidos, e também que todas as outras causas que podem mover diversamente os espíritos bastam para conduzi-los a diversos músculos; juntemos aqui que a pequena glândula, que é a principal sede da alma, está de tal forma suspensa entre as cavidades que contêm esses espíritos que pode ser movida por eles de tantos modos diversos quantas as diversidades sensíveis nos objetos; mas que pode também ser diversamente movida pela alma48, a qual é de tal natureza que recebe em si tantas impressões diversas, isto é, que ela tem tantas percepções diversas quantos diferentes movimentos sobrevêm nessa glândula; como também, reciprocamente, a máquina do corpo é de tal forma composta que, pelo simples fato de ser essa glândula diversamente movida pela alma ou por qualquer outra causa que possa existir, impele os espíritos animais que a circundam para os
poros do cérebro, que os conduzem pelos nervos aos músculos, mediante o que ela os leva a mover os membros.
Art. 35. Exemplo da maneira como as impressões dos objetos se unem na glândula que fica no meio do cérebro.
Assim, por exemplo, se vemos algum animal vir em nossa direção, a luz refletida de seu corpo pinta duas imagens dele, uma em cada um de nossos olhos, e essas duas imagens formam duas outras, por intermédio dos nervos ópticos, na superfície interior do cérebro defronte às suas concavidades; daí, em seguida, por intermédio dos espíritos que enchem suas cavidades, essas imagens irradiam de tal sorte para a pequena glândula envolvida por esses espíritos, que o movimento componente de cada ponto de uma das imagens tende para o mesmo ponto da glândula para o qual tende o movimento que forma o ponto da outra imagem, a qual representa a mesma parte desse animal, por meio do que as duas imagens existentes no cérebro compõem apenas uma única na glândula, que, agindo imediatamente contra a alma, lhe faz ver a figura desse animal.

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