quinta-feira, 16 de junho de 2011

O Ódio está no topo da lista dos problemas filosóficos

A onda de terrorismo hoje levanta o questionamento sobre o sentimento de cólera que toma as consciências mundo afora em um ritmo cada vez mais acelerado. É o problema filosófico número um da atualidade para o pensador francês André Glucksmann, autor do livro O discurso do ódio (Editora Difel, 2007). "O terrorismo nos educa mais do que se deixa educar. Questiona cada um em seus relacionamentos com os outros, com o mundo e consigo mesmo", explica Glucksmann, que espelha um desejo quase que intransponível de acabar com tudo e com todos, levar o mundo à destruição total e instaurar o apocalipse planetário.
Os atos terroristas exprimem, para entrar no campo da Psicanálise de Freud, a "pulsão de morte" que todos os seres humanos alimentam no inconsciente.
Os atos terroristas exprimem, para entrar no campo da Psicanálise de Freud, a "pulsão de morte" que todos os seres humanos alimentam no inconsciente, a relação interior e conflituosa entre Eros e Tânatos. Na obra clássica de sua autoria, O mal-estar na civilização, a agressividade humana, ou melhor, a impossibilidade de colocá-la em prática por conta das imposições da cultura e do mundo civilizado, é um fator de frustração. Teoricamente, tal condição lhe assegura mais segurança se comparado à gozada pelo primo distante das cavernas. Por isso "não é fácil aos homens abandonar a satisfação dessa inclinação para a agressão. Sem ela, eles não se sentem confortáveis", escreve Freud.
 Preceptor de um dos mais sanguinários imperadores de Roma (Nero), Sêneca escreveu antes da chegada ao poder de seu pupilo um tratado sobre a cólera, além de fazer releituras de tragédias gregas, como Medéia, personagem mítico que, após ser traída pelo marido (Jasão) e banida do convívio com os filhos, refugia-se e alimenta a vingança. Sua vontade de aplacar esse sentimento não poupa nem os próprios filhos. "Nenhuma força no mundo, nenhum incêndio, nenhum ciclone ou máquina de guerra possui a violência de uma mulher abandonada, nem sua violência, nem seu ódio", escreve Sêneca na tragédia em questão. O filósofo romano foi contemporâneo de Jesus Cristo e um dos principais nomes do estoicismo, doutrina cuja característica principal é ter a coragem e resignação como motes de vida.
Em uma passagem no tratado sobre a cólera, Sêneca chama a atenção para o papel que o acúmulo de ressentimentos pode desempenhar, funcionando muitas vezes como uma bomba- relógio, sem ponteiros ou números que contabiliza as mágoas e não sabe quando poderá explodir. Aqui, a ironia é, ao mesmo tempo, didática e cruel: a cólera ou o ódio são como ataques terroristas, não sabemos quando acontece, quando surge, nem tampouco o estrago que pode provocar. "Ele é pura excitação e dedica-se inteiramente à impetuosidade de seu ressentimento: ele não pode recuar diante de um desejo ardente e inumano de combate, sangue e suplícios. Indiferente a si mesmo, desde que possa prejudicar os outros, o ódio se precipita sobre suas próprias armas, ávido de uma vingança que arrastará consigo o vingador", analisa o filósofo romano.
RECORRENTE E IRRACIONAL
Portanto, mapear o volume de ressentimentos que "induz a inteligência contemporânea a desprezar a razão", acredita o escritor húngaro ganhador do Prêmio Nobel em 2002 Imre Kertész, leva-nos a uma história intelectual do ódio e do intelecto. Kertész sofreu e viu o que pode virar um ódio institucionalizado e instrumentalizado pelo discurso político. Judeu, foi deportado pelo regime nazista para Auschwitz, em 1944. Racismos, chauvinismos e fanatismos disseminam o ódio. Ninguém se salva nesta batalha que só tem perdedores.
Nessa perspectiva, a Geni, da canção de Chico Buarque, Pandora, da mitologia grega, Bola de Sebo, do conto de Guy de Maupassant, ou a Eva, da tradição bíblica, entre outras tantas personagens femininas, são alvos de um ódio mais que planetário e universal. Esse fenômeno parece não cessar. Parece que quanto mais avançamos nos séculos e a participação delas em áreas antes dominadas pelos homens aumenta, mais os olhos tortos da falta de razão apontam o dedo e culpam as mulheres por algum tipo de crime contra a felicidade da humanidade. "Como assume várias formas de acordo com as épocas e as circunstâncias em função das religiões e ideologias, ele intriga por sua recorrência no curso dos tempos e na multiplicidade dos espaços", analisa Glucksmann.
O filósofo Daniel Lins explica que, "no começo", a mulher, agente maior de nossa mitologia, foi considerada inumana, senão como animal, complemento ou "mal necessário". Portanto, o ser humano, o gênero humano, o humano é masculino, fundamento criacional que infelizmente ainda sustenta o preconceito em relação a elas.
Menos evidente que outros tipos de ódio, o relacionado às mulheres se reveste de máscaras, sendo o amor em excesso a sua dissimulação
A tese defendida por Glucksmann é que, menos evidente que outros tipos de ódio, o relacionado às mulheres se reveste de máscaras, sendo o amor em excesso a sua dissimulação. Segundo ele, basta visitar as livrarias e conferir as incontáveis obras consagradas ao amor e poucas dedicadas ao ódio. "Tudo acontece como se o ódio fosse apenas o contrário do amor, sua crise, sua falta ou a soma psicológica de seus insucessos amorosos, o espelho de sua ausência." Neste ponto, seria interessante notar que o ser odioso é antípoda do amoroso, porém os dois sentimentos não deixam de ser paixões. Positivas ou negativas, boas ou ruins, o contexto contará aqui para avaliar a sua qualidade. Georg Hegel, na Enciclopédia das ciências filosóficas, dirá que "nada de grande se realizou no mundo sem paixão".
Martin Heidegger reconhece, em ambas, duas maneiras de ser, fundamentais, que alimentam a existência. "Depois de eclodir, o ódio não se dissipa, ele apenas cresce e se cristaliza, corrói e devora nossa essência. Essa inacessibilidade constante que se estabelece na existência humana pelo ódio não o torna, porém, nem recluso, nem cego, mas lúcido e deliberado. A cólera faz perder o juízo. O ódio exacerba a consciência e a capacidade de reflexão de quem o possui, até alcançar os requintes mais sutis de perversidade. O ódio nunca é cego, mas sim clarividente; apenas a cólera é cega. O amor nunca é cego, ele também é clarividente. Somente o estado de enamoramento é cego, instável e imprevisível; mas esse é um afeto, não uma paixão. Cabe à paixão expandir- se para além dela mesma e tomar conta de tudo. No ódio se produz, igualmente, esse tipo de expansão, porque ele persegue sem cessar e por toda parte seu objeto", diz o filósofo alemão no texto Nietzsche.
Comentando esse trecho e levando adiante a relação entre os dois sentimentos, Glucksmann resume a interação como dois trens que seguem trajetos paralelos, mas em sentido inverso. Ódio e amor se cruzam sem se tocar, portanto, "o que falta é o entremeio que constitui o tempero da existência", receita.
Fonte: Revista Ciência&Vida de Filosofia.

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