Art. 1. O que é paixão em relação a
um sujeito é sempre ação a qualquer outro respeito?
Nada há em que melhor apareça quão
defeituosas são as ciências que recebemos dos antigos do que naquilo que
escreveram sobre as paixões; pois, embora seja esta uma matéria cujo
conhecimento foi sempre muito procurado, e ainda que não pareça ser das mais
difíceis, porquanto cada qual, sentindo-as em si próprio, não necessita tomar
alhures qualquer observação para lhes descobrir a natureza, todavia o que os
antigos delas ensinaram é tão pouco, e na maior parte tão pouco crível, que não
posso alimentar qualquer esperança de me aproximar da verdade, senão
distanciando-me dos caminhos que eles trilharam. Eis por que serei obrigado a
escrever aqui do mesmo modo como se tratasse de uma matéria que ninguém antes
de mim houvesse tocado; e, para começar, considero que tudo quanto se faz ou
acontece de novo é geralmente chamado pelos filósofos uma paixão em relação ao
sujeito a quem acontece, e uma ação com respeito àquele que faz com que
aconteça1;
de sorte que, embora o agente e o paciente sejam amiúde muito diferentes, a
ação e a paixão não deixam de ser sempre uma mesma coisa com dois nomes, devido
aos dois sujeitos diversos aos quais podemos relacioná-la. 1
Art.2 . Que
para conhecer as paixões da alma cumpre distinguir entre as suas funções e as
do corpo.
Depois, também considero que não
notamos que haja algum sujeito que atue mais imediatamente contra nossa alma do
que o corpo ao qual está unida, e que, por conseguinte, devemos pensar que
aquilo que nela é uma paixão é comumente nele uma ação; de modo que não existe
melhor caminho para chegar ao conhecimento de nossas paixões do que examinar a
diferença que há entre a alma e o corpo, a fim de saber a qual dos dois se deve
atribuir cada uma das funções existentes em nós.
Art.3 . Que
regra se deve seguir para esse efeito?
E nisso não se encontrará grande
dificuldade, se se tomar em conta que tudo o que sentimos existir em nós, e que
vemos existir também nos corpos inteiramente inanimados, só deve ser atribuído
ao nosso corpo; e, ao contra- rio, que tudo o que existe em nós, e que não
concebemos de modo algum como passível de pertencer a um corpo, deve ser
atribuído à nossa alma2.
Art.4. Que o
calor e o movimento dos membros procedem do corpo, e os pensamentos, da alma.
Assim, por não concebermos que o
corpo pense de alguma forma, temos razão de crer que toda espécie de pensamento
em nós existente pertence à alma; e, por não duvidarmos de que haja corpos
inanimados que podem mover-se de tantas diversas maneiras que as nossas, ou
mais do que elas, e que possuem tanto ou mais calor (o que a experiência mostra
na chama, que possui, ela só, muito mais calor e movimento do que qualquer de
nossos membros), devemos crer que todo o calor e todos os movimentos em nós
existentes, na medida em que não dependem do pensamento, pertencem apenas ao
corpo.
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