A perspectiva do ser-em é, acreditamos, o
traço essencial da psicopatologia existencial, tal como a encontramos na obra
de Binswanger. Mas esse traço distintivo talvez seja ao mesmo tempo o fator
responsável por suas dificuldades. Em primeiro lugar, o paradigma da existência
não pode ser "operacionalizado" sem descaracterizar-se de modo significativo.
A noção de ser-em viabiliza uma visão total da existência, e desse modo essa
noção não é passível de ser tematizada como uma realidade circunscrita e
objetiva. Nisto consiste, possivelmente, a dificuldade de sua
"aplicação". Algumas vezes, por exemplo, as análises de Binswanger
parecem esbarrar num meio caminho entre dois extremos, a saber, entre a
fecundidade da analítica heideggeriana do dasein (que é o seu ponto de
partida) e a objetividade da psicopatologia enquanto ciência - tomando-se, por
conseqüência, empobrecedoras em relação à primeira e vagas em relação à
segunda.
Por outro lado, não se poderia exigir que a
daseinsanalyse explicasse por que ocorrem "distorsões"
na estrutura "normal" do ser no mundo. Essas distorsões, de qualquer
modo, são possibilidades inerentes ao ser da presença. E mesmo que se
identifiquem "causas", sejam orgânicas ou não (e elas podem de fato
ser identificadas), e ainda que a abordagem existencial possa tomá-las em
consideração, tal identificação não afeta sua visão do fenômeno. É nesse
sentido que se diz que a noção de existência está aquém do plano dos
fatos objetivos observados pela ciência. Esta não é uma limitação do pensamento
existencial, é ao contrário o seu valor. A "idéia" básica da
fenomenologia não consiste apenas em inserir um mundo de aparências (as coisas
tal como elas aparecem) nos meandros de um mundo "real". Essa idéia é
muito mais fundamental, e consiste em afirmar que é o nível "do vivido ou
do fenomenal que se trata precisamente de justificar e reabilitar como
fundamento do nível objetivo." (Merleau-Ponty, 1992:195-6) De acordo com
essa idéia, o campo fenomenal da experiência vivida, da inserção em um
mundo, é aquele que dá sentido à existência de certos fatos objetivos isolados.
Nessa linha, Binswanger, após identificar a "essência antropológica"
de uma enfermidade, passa a reexaminar os conhecimentos estabelecidos a
respeito do comportamento anormal em estudo para, por assim dizer, corrigi-los.
Uma outra dificuldade das análises de
Binswanger diz respeito ao método empregado. Ora, vimos, com Heidegger, que o
ser no mundo é um a priori existencial (isto é, um a priori que
não é "apriorístico" no sentido de ser anterior à experiência). E
dissemos acima que a enfermidade pode sempre ser compreendida no plano do ser
no mundo, no modo em que ela se dá existencialmente, sem que seja
necessário recorrer ao nível das causas objetivas (mas sem que seja proibido
fazê-lo). Com efeito, é interessante na perspectiva existencial a visualização
do comportamento como atitude geral, como movimentação total da existência em
um mundo. Essa visualização de modo algum é incompatível com o estudo objetivo
do comportamento e de sua gênese8.
Mas uma conseqüência desse "recorte" do comportamento talvez seja a
linguagem metafórica e imprecisa de que se lança mão para apreendê-lo. Esse
tipo de linguagem, contudo, se justifica (embora Binswanger não o afirme
expressamente) justamente por visar o ser-em, e porque este não pode ser definido
e avaliado "segundo sinais objetivos". Os fenômenos psicopatológicos,
enquanto modalidades existenciais, não podem ser apreendidos como realidades
substanciais e inconfundíveis. É interessante a posição de Binswanger quanto a
esse problema: "Naturalmente, é preciso ter em mente aí que, ao
perguntarmos se um determinado fato 'pertence' a uma essência, muitas vezes se
trata de uma questão puramente 'de tato', ou seja, de uma questão do domínio da
experiência fenomenológica, que não é diferente da questão se
determinada obra de arte linguística pertence à essência artística da poesia
lírica, épica ou dramática, não importando a nitidez com que essas essências
possam ser contrastadas enquanto tais. (...) Assim como no domínio da arte,
também na análise existencial, as definições rígidas devem ser consideradas
como obstáculos para a pesquisa". (Binswanger, 1977: 97-8).
Desse modo, a linguagem metafórica e o
caráter abrangente de muitos conceitos utilizados por Binswanger estão em
correlação com o tipo de fenômeno visado. A relevância teórica do paradigma da
existência na psicopatologia e na psicologia, ao menos em parte, deve ser
avaliada de acordo com a importância que possa ter, para a compreensão do
comportamento humano, a noção de ser-em, entre outras. A importância da
abordagem existencial reside, a nosso ver, no alcance que pode trazer à
compreensão da experiência humana, e também no fato de ser um paradigma de investigação
científica atento aos fundamentos ontológicos da realidade.
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