Art. 15. Quais são as causas de sua
diversidade.
E essa desigualdade pode proceder das
diversas matérias de que se compõem, como se vê nos que beberam muito vinho
cujos vapores, entrando prontamente no sangue, sobem do coração ao cérebro,
onde se convertem em espíritos que, sendo mais fortes e mais abundantes do que
aqueles que aí se encontram comumente, são capazes de mover o corpo de muitas
maneiras estranhas. Esta desigualdade dos espíritos pode também proceder das
diversas disposições do coração, do fígado, do estômago, do baço e de todas as
outras partes que contribuem para a sua produção; pois cumpre principalmente
observar aqui certos pequenos nervos insertos na base do coração, que servem
para alargar e estreitar as entradas dessas concavidades, por meio do que o
sangue, dilatando-se nelas mais ou menos fortemente, produz espíritos
diversamente dispostos. É preciso notar também que, embora o sangue que penetra
no coração provenha de todos os outros lugares do corpo, todavia acontece
muitas vezes ser ele impelido mais de certas partes do que de outras, porque os
nervos e os músculos que respondem a essas partes o pressionam ou agitam mais,
e porque, conforme a diversidade das partes de onde vem mais, dilata-se
diversamente no coração, e em seguida produz espíritos dotados de qualidades
diferentes. Assim, por exemplo, o que provém da parte inferior do fígado, onde
está o fel, dilata-se no coração de maneira diferente da do sangue oriundo do
baço, e este de modo diferente do do proveniente das veias dos braços ou das
pernas, e enfim este diferentemente do suco dos alimentos, quando, tendo de
novo saído do estômago e dos intestinos, passa rapidamente pelo fígado até o
coração.
Art. 16. Como todos os membros podem
ser movidos pelos objetos dos sentidos e pelos espíritos sem a ajuda da alma.
Enfim, é preciso notar que a máquina de nosso corpo é de tal
modo composta que todas as mudanças que ocorrem no movimento dos espíritos
podem levá-los a abrir alguns poros do cérebro mais do que outros, e
reciprocamente que, quando algum desses poros está pouco mais ou menos aberto
que de costume pela ação dos nervos que servem aos sentidos22, isso
altera algo no movimento dos espíritos e determina que sejam conduzidos aos
músculos destinados a mover o corpo da forma como ele é comumente movido por
ocasião de tal ação; de sorte que todos os movimentos que fazemos sem que para
isso a nossa vontade contribua (como acontece muitas vezes quando respiramos,
andamos, comemos e, enfim, quando praticamos todas as ações que são comuns a
nós e aos animais) não dependem senão da conformação de nossos membros e do curso
que os espíritos, excitados pelo calor do coração, seguem naturalmente no
cérebro, nos nervos e nos músculos, tal como o movimento de um relógio é
produzido para exclusiva força de sua mola e pela forma de suas rodas.
Art. 17. Quais são as funções da alma.
Depois de ter assim considerado todas
as funções que. pertencem somente ao corpo, é fácil reconhecer que nada resta
em nós que devemos atribuir à nossa alma, exceto nossos pensamentos, que são
principalmente de dois géneros, a saber: uns são as ações da alma, outros as
suas paixões. Aquelas que chamo suas ações são todas as nossas vontades, porque
sentimos que vêm diretamente da alma e parecem depender apenas dela; do mesmo
modo, ao contrário, pode-se em geral chamar suas paixões toda espécie de
percepções ou conhecimentos existentes em nós, porque muitas vezes não é nossa
alma que os faz tais como são, e porque sempre os recebe das coisas por elas representadas23
Art. 18. Da vontade.
Nossas vontades são, novamente, de
duas espécies; pois umas são ações da alma que terminam na própria alma, como
quando queremos amar a Deus ou, em geral, aplicar nosso pensamento a qualquer
objeto que não é material; as outras são ações que terminam em nosso corpo,
como quando, pelo simples fato de termos vontade de passear, resulta que nossas
pernas se mexam e nós caminhemos.
Art. 19. Da percepção.
Nossas percepções também são de duas
espécies: umas têm a alma como causa, outras o corpo2 4.
As que têm a alma como causa são as percepções de nossas vontades e de todas as
imaginações ou outros pensamentos que dela dependem; pois é certo que não
poderíamos querer qualquer coisa que não percebêssemos pelo mesmo meio que a
queremos; e, embora com respeito à nossa alma seja uma ação o querer alguma
coisa, pode-se dizer que é também nela uma paixão o perceber que ela quer;
todavia, dado que essa percepção e essa vontade são efetivamente uma mesma
coisa2 6, a sua denominação faz-se sempre pelo que é mais nobre, e
por isso não se costuma chamá-la paixão, mas apenas ação.
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