A idéia de ser no mundo explicita então o
fato de que o "ser que é" se constitui enquanto quem de uma
existência humana no mesmo movimento em que um mundo se constitui enquanto mundo,
isto é, enquanto mundo para esse ser que nele é. Não há sentimento,
comportamento ou qualquer outro modo de ser de uma pessoa que exista
isoladamente, como um fenômeno "em si". Essa afirmação, que pode
parecer banal, nem sempre é assumida em suas conseqüências últimas. Nenhum
desses fenômenos pode, por exemplo, pretender ocupar o lugar de causa primeira,
pois a causa primeira é o mundo -ou, mais exatamente, o ser no mundo. Se
olharmos de perto, veremos que a angústia de uma pessoa, que nos parece
"vir de dentro", está também "fora", que em última instância
não existe nem "dentro" nem "fora", e que em seu ser alguém
só se angustia porque o mundo o arrasta em sua angústia. E por "o
mundo" não se quer aludir necessariamente ao mundo enquanto
"vastidão", mas à região do mundo abarcada pelo fenômeno em causa -
"mundo" significa aqui o polo dessa união indiscernível que o
ser-no-mundo busca evidenciar, e que pode ser, a depender da região de
"consciência" envolvida, um mundo extremamente "pequeno". A
compreensão dessa unidade fundamental do ser no mundo se revela de muita valia
para a psicologia, pois a atitude científica muitas vezes se debate para
explicar o modo complexo de relacionamento entre certas "coisas" que
ela mesma cuidou de separar.
Exemplifiquemos a aplicação do modelo do
ser no mundo na psicopatologia através do livro de L. Binswanger, Três
Formas da Existência Malograda, uma reunião de três ensaios sobre as formas
patológicas da "extravagância", da "excentricidade" e do
"amaneiramento" (Binswanger, 1977). Partindo da ontologia fundamental
de Heidegger, Binswanger procura reconhecer a enfermidade como um estilo ou
modo particular de ser no mundo, como variação ou "distorsão" da
estrutura ontológica do ser no mundo. Compreender a enfermidade é identificar
sua "essência antropológica", isto é, as condições antropológicas de
sua possibilidade (pois a modalidade existencial em que consiste a enfermidade,
mesmo sendo uma distorsão da estrutura fundamental do ser no mundo, só é
possível a partir desta estrutura, já que é uma variação da mesma). Uma antropologia,
com efeito, em sentido amplo, deve evidenciar os modos de ser básicos e as
possibilidades concretas e gerais do ser humano. Para alcançar essa evidência
antropológica, Binswanger lança mão de um método fenomenológico de reflexão,
que busca atingir a essência da enfermidade com base em suas manifestações
concretas. Ele examina freqüentemente a significação antropológica de
expressões da fala cotidiana referentes aos fenômenos em causa (que muitas
vezes apreendem de modo intuitivo o ser da "doença"), e se vale
ocasionalmente de informações sobre o comportamento humano em outras culturas.
A identificação de uma essência
antropológica corresponde, do ponto de vista analítico-existencial, ao
delineamento de uma estrutura. Só a partir das condições antropológicas de
possibilidade se pode compreender o sentido de uma sintomatologia. Está de
antemão fadada ao fracasso qualquer tentativa de derivar a doença a partir da
relação entre humores fundamentais e independentes, postulando-se, por exemplo,
que um determinado sentimento possa desencadear um determinado comportamento ou
sintoma. Mesmo que se identifique esse sentimento como surgido a partir de uma
certa situação (situando-o portanto num contexto comportamental), o problema
residirá em estabelecer essa relação termo a termo entre situação causadora e
sintoma. Embora muitas vezes as coisas pareçam se dar dessa forma, pode estar
por trás dessa aparência uma estrutura geral da modalidade existencial do
indivíduo que, não se dispusesse ela dessa forma, talvez aquela conexão causal
não se estabelecesse. O modelo do "distúrbio primário" muitas vezes
incorre nesse erro. Se a idéia de "distúrbio primário" tem a vantagem
de retirar da base da enfermidade qualquer elemento intencional (no sentido de
intenção consciente), ela não é, contudo, o fundamento último, pois não encerra
seu sentido em si mesmo, já que só encontra sua razão de ser na estrutura do
ser no mundo.
Assim, para Binswanger, a análise
existencial se posiciona aquém da distinção intenção-distúrbio primário.
Aliás, o ponto de vista existencial também antecede à distinção "com
sentido-sem sentido" (Binswanger, 1977: 32-33), porque uma vez que o ser
da pre-sença coincide com a unidade fundamental do ser no mundo, não pode haver
algo que diga respeito a esse ser e que seja sem sentido.
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