terça-feira, 29 de maio de 2012

DESCARTES – AS PAIXÕES DA ALMA


Art. 26. Que as imaginações que dependem apenas do movimento fortuito dos espíritos podem ser também paixões tão verdadeiras quanto as percepções que dependem dos nervos3 3.
Resta notar aqui que exatamente as mesmas coisas que a alma percebe por intermédio dos nervos lhe podem ser também representadas pelo curso fortuito dos espíritos, sem que haja outra diferença exceto que as impressões vindas ao cérebro por meio dos nervos costumam ser mais vivas e mais expressas do que as excitadas nele pelos espíritos; o que me levou a dizer no art. 21 que as últimas são como a sombra e a pintura das outras. É preciso também notar que ocorre algumas vezes ser essa pintura tão semelhante à coisa representada, que podemos enga-nar-nos no tpcante às percepções que se relacionam aos objetos fora de nós, ou então quanto às que se relacionam a algumas partes de nosso corpo, mas não podemos equivocar-nos do mesmo modo no tocante às paixões, porquanto são tão próximas e tão interiores à nossa alma que lhe é impossfvel senti-las sem que» sejam verdadeiramente tais como ela as sente. Assim, muitas vezes quando dormimos, e mesmo algumas vezes estando acordados, imaginamos tão fortemente certas coisas que pensamos vê-las diante de nós, ou senti-las no corpo, embora aí não estejam de modo algum; mas, ainda que estejamos adormecidos e sonhemos, não podemos sentir-nos tristes ou comovidos por qualquer outra paixão, sem que na verdade a alma tenha em si esta paixão3 4.
Art. 27. A definição das paixões da alma.
Depois de haver considerado no que as paixões da alma diferem de todos os seus outros pensamentos, parece-me que podemos em geral defini-las por percepções, ou sentimentos, ou emoções da alma, que referimos particularmente a ela, e que são causadas, mantidas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos3 s.
Art. 28. Explicação da primeira parte dessa definição3 6.
Podemos chamá-las percepções quando nos servimos em geral desse termo para significar todos os pensamentos que não constituem ações da alma ou vontades, mas não quando o empregamos apenas para significar conhecimentos evidentes; pois a experiência mostra que os mais agitados por suas paixões não são aqueles que melhor as conhecem, e que elas pertencem ao rol das percepções que a estreita aliança entre a alma e o corpo torna confusas e obscuras3 7. Podemos também chamá-las sentimentos, porque são recebidas na alma do mesmo modo que os objetos dos sentidos exteriores, e não são de outra maneira38 conhecidos por ela; mas podemos chamá-las melhor ainda emoções da alma, não só porque esse nome pode ser atribuído a todas as mudanças que nela sobrevêm, isto é, a todos os diversos pensamentos que lhe ocorrem, mas particularmente porque, de todas as espécies de pensamentos que ela pode ter, não há outros que a agitem e a abalem tão fortemente como essas paixões.
Art. 29. Explicações de sua outra parte.
Acrescento que elas se relacionam particularmente com a alma, para distingui-las dos outros sentimentos que referimos, uns aos objetos exteriores, como os odores, os sons, as cores, e os outros ao nosso corpo, como a fome, a sede, a dor. Acrescento, outrossim, que são causadas, sustentadas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos, a fim de distingui-las de nossas vontades, que podemos denominar emoções da alma que se relacionam com ela, mas que são causadas por ela própria, e também a fim de explicar sua derradeira e mais próxima causa, que as distingue novamente dos outros sentimentos.
Art. 30. Que a alma está unida a todas as partes do corpo conjuntamente3*.
Mas, para compreender mais perfeitamente todas essas coisas, é necessário saber que a alma está verdadeiramente unida ao corpo todo40, e que não se pode propriamente dizer que ela esteja em qualquer de suas partes com exclusão de outras, porque o corpo é uno e de alguma forma indivisível4 n, em virtude da disposição de seus órgãos, que se relacionam de tal modo uns com os outros que, quando algum deles é retirado, isso torna o corpo todo defeituoso; e porque ela é de uma natureza que não tem qualquer relação com a extensão nem com as dimensões ou outras propriedades da matéria de que o corpo se compõe, mas apenas com o conjunto dos seus órgaõs42, como transparece pelo fato de não podermos de maneira alguma conceber a metade ou um terço de uma alma, nem qual extensão ocupa, e por não se tornar ela menor ao se cortar qualquer parte do corpo, mas separar-se inteiramente dele quando se dissolve o conjunto de seus órgãos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário