A investigação fenomenológica de Heidegger
é de caráter ontológico, isto é, busca as determinações essenciais do ser dos
entes. Dessa maneira, pretende sempre situar-se aquém do plano empírico ou
ôntico (dos entes) e constituir-se na condição de possibilidade do mesmo.
Assim, as estruturas ontológicas explicitadas na análise do dasein (como
ocupação, disposição, compreensão, discurso) não devem ser confundidas com
aqueles que seriam os seus correlatos ônticos ou empíricos (afeto, desejo,
conhecimento, linguagem) -na verdade, tais estruturas são a fundamentação
existencial dos mesmos. A analítica existencial "está antes de toda
psicologia, antropologia e, sobretudo, biologia." (Heidegger, 1995: 81)1.
Ela corresponde à abertura de um a priori mas sem que isso signifique
uma "construção apriorístíca" (ibid: 87), isto é, desvinculada
de toda "empiria". Com efeito, a pesquisa científica e a pesquisa
ontológica podem até convergir, esta última tendendo sempre para uma maior
"purificação" e transparência do que se descobriu onticamente. A
investigação científica realiza uma primeira e tosca "fixação dos setores
dos objetos", e só o faz a partir da abertura originária ao modo de ser
dos entes pela qual a experiência ordinária do mundo é responsável. Para que o
questionamento científico possa abordar uma determinada região dos entes, é preciso
antes que essa região seja elevada do horizonte da experiência original - o
horizonte da relação fundamental do ente que questiona com o mundo questionado.
Por isso o ser do homem, a pre-sença2,
possui uma dimensão ontológica fundamental. Na verdade, no texto de Heidegger,
o status da pre-sença é ambíguo. De um lado, ela é um ente, o
ente que cabe à analítica existencial investigar e que é o equivalente de
homem. Por outro lado, a pre-sença não deve ser entendida como sinônimo de
"homem", pois ela é uma determinação ontológica, já que
corresponde ao ser desse ente que coloca a questão do ser. A resposta a esse
dilema encontra-se no fato de que Heidegger considera que a pre-sença é um ente
especial, um ente que é, em si mesmo, ontológico, na medida em que é o único
ente de cujo ser faz parte uma abertura originária ao modo de ser de todos os
outros entes - isto é, é constitutivo do ser do homem o desvelamento do sentido
do "é", a partir do qual o mundo nos advém como sendo de determinada
maneira. Essa característica da presença se tornará mais clara com a
explicitação da estrutura do ser no mundo - o ser no mundo, aliás, é justamente
a constituição ontológica da presença.
O ser no mundo pode ser visivelmente
desmembrado em três partes, que são seus momentos constitutivos: o "ser",
o "mundo" e o "em". Dito de outro modo e em outra ordem: o
mundo em que o ser é, o quem que é no mundo, e o modo de ser-em em si
mesmo. A cada um desses momentos é dedicado um capítulo da obra (capítulos
terceiro, quarto e quinto, respectivamente). No entanto, o ser no mundo é uma
estrutura unitária, e só pode ser decomposta para efeito de análise. A própria
análise, na verdade, demonstra essa unidade, pois o "mundanidade" só
se deixa caracterizar mediante uma compreensão do ser para quem existe
um mundo, o ser que é-no-mundo, por sua vez, só se revela a partir de sua
"morada" (o mundo), e a relação de ser-em pressupõe a compreensão dos
termos que se relacionam no modo do "em". Em suma - e isso é
fundamental para se compreender a idéia de ser no mundo em toda sua
profundidade -, a explicitação da estrutura da pre-sença já traz consigo o
desvelamento do mundo e vice-versa.
Pode-se dizer que a aparente obviedade do
ser no mundo deriva da naturalidade com que esse "no" se nos aparece.
Grande parte da importância do pensamento de Heidegger consiste em ter ele
problematizado o "ser-em" da existência humana. Para uma coisa, um
objeto (que a terminologia heideggeriana designa por "ser simplesmente
dado"), o "em" corresponde ao "dentro", a uma relação
meramente espacial de inclusão. Mas de que modo se pode dizer que o homem (um
ente dotado do modo de ser da pre-sença) está "em" o mundo? Não é
suficiente dizer que a pre-sença está "dentro" do mundo, que está
simplesmente "aí", que o homem foi uma vez abandonado ao
mundo. O "dentro" não pode se adequar a um ente que, em certo
sentido, traz o mundo "dentro" de si 3.
O homem não "é", primeiramente, para depois criar relações com um
mundo, ele é homem na exata medida de seu ser-em, isto é, na exata medida em
que possui um mundo ou abre o sentido de um mundo. Não existe anterioridade
entre esses dois movimentos. "Assumir relações com o mundo só é possível
porque a pre-sença, sendo-no-mundo, é como é." (Heidegger, 1985: 96) Por
isso, para Heidegger, dizer que o homem "tem um mundo" nada
significa, do ponto de vista ontológico, enquanto não se esclarecer o caráter
desse "ter".
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