segunda-feira, 21 de maio de 2012

DESCARTES - AS PAIXÕES DA ALMA


Art. 5. Que é erro acreditar que a alma dá o movimento e o calor ao corpo.
Por esse meio, evitaremos um erro considerável em que muitos caíram, de sorte que o reputo a principal causa que até agora impediu que se pudessem explicar bem as paixões e as outras coisas pertencentes à alma. Consiste em ter-se imaginado, vendo-se que todos os corpos mortos são privados de calor e depois de movimento, que era a ausência da alma que fazia cessar esses movimentos e esse calor; e assim se julgou, sem razão, que o nosso calor natural e todos os movimentos de nossos corpos dependem da alma3, ao passo que se devia pensar, ao contrário, que a alma só se ausenta, quando se morre, porque esse calor cessa, porque os órgãos que servem para mover o corpo se corrompem.
Art. 6. Que diferença há entre um corpo vivo e um corpo morto.
A fim de evitarmos, portanto, esse erro, consideremos que a morte nunca sobrevêm por culpa da alma, mas somente porque alguma das principais partes do corpo se corrompe; e julguemos que o corpo de um homem vivo difere do de um morto como um relógio, ou outro autômato (isto é, outra máquina que se mova por si mesma), quando está montado e tem em si o princípio corporal dos movimentos para os quais foi instituído, com tudo o que se requer para a sua ação, difere do mesmo relógio, ou outra máquina, quando está quebrado e o princípio de seu movimento pára de agir 4.
Art. 7. Breve explicação das partes do corpo e de algumas de suas funções.
Para tornar isso mais inteligível, explicarei, em poucas palavras, a forma toda de que se compõe a má  quina de nosso corpo5. Não há quem já não saiba que existem em nós um coração, um cérebro, um estômago, músculos, nervos, artérias, veias e coisas semelhantes; sabe-se também que os alimentos ingeridos descem ao estômago e às tripas, de onde o seu suco, correndo para o fígado e para todas as veias, se mistura com o sangue que elas contêm, aumentando, por esse meio, a sua quantidade6. Aqueles que ouviram falar, por pouco que seja, da medicina sabem, além disso, como se compõe o coração e como todo o sangue das veias pode facilmente correr da veia cava para seu lado direito, e daí passar ao pulmão pelo vaso que denominamos veia arteriosa, depois retornar do pulmão ao lado esquerdo do coração pelo vaso denominado artéria venosa7, e, enfim, passar daí para a grande artéria, cujos ramos se espalham pelo corpo inteiro. E mesmo todos os que não foram cegados inteiramente pela autoridade dos antigos, e que quiseram abrir os olhos para examinar a opinião de Harvey no tocante à circulação do sangue8, não duvidam de que todas as veias e artérias do corpo sejam como regatos por onde o sangue não pára de correr muito rapidamente, começando seu curso na cavidade direita do coração pela veia arteriosa, cujos ramos se espalham por todo o pulmão e se juntam aos da artéria venosa, pelo qual ele passa do pulmão ao lado esquerdo do coração; depois segue daí para a grande artéria, cujos ramos, esparsos pelo resto do corpo, se unem aos ramos da veia que levam de novo o mesmo sangue à cavidade direita do coração, de sorte que essas duas cavidades são como eclusas, através de cada uma das quais passa todo o sangue em cada volta que faz pelo corpo. Demais, sabe-se que todos os movimentos dos membros dependem dos músculos e que estes músculos se opõem uns aos outros, de tal modo que, quando um deles se encolhe, atrai para si a parte do corpo a que está ligado, o que provoca ao mesmo tempo o alongamento do músculo que lhe é oposto; depois, se acontece numa outra vez que este último se encolha, leva o primeiro a alongar-se e puxa para si a parte a que eles estão ligados. Enfim, sabe-se que todos esses movimentos dos músculos, assim como todos os sentidos, dependem dos nervos, que são como pequenos fios ou como pequenos tubos que procedem, todos, do cérebro, e contêm, como ele, certo ar ou vento muito sutil que chamamos espíritos animais9.

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