Art. 5. Que é erro acreditar que a
alma dá o movimento e o calor ao corpo.
Por esse meio, evitaremos um erro
considerável em que muitos caíram, de sorte que o reputo a principal causa que
até agora impediu que se pudessem explicar bem as paixões e as outras coisas
pertencentes à alma. Consiste em ter-se imaginado, vendo-se que todos os corpos
mortos são privados de calor e depois de movimento, que era a ausência da alma
que fazia cessar esses movimentos e esse calor; e assim se julgou, sem razão,
que o nosso calor natural e todos os movimentos de nossos corpos dependem da
alma3,
ao passo que se devia pensar, ao contrário, que a alma só se ausenta, quando se
morre, porque esse calor cessa, porque os órgãos que servem para mover o corpo
se corrompem.
Art. 6. Que diferença há entre um corpo vivo e um corpo
morto.
A fim de evitarmos, portanto, esse
erro, consideremos que a morte nunca sobrevêm por culpa da alma, mas somente
porque alguma das principais partes do corpo se corrompe; e julguemos que o
corpo de um homem vivo difere do de um morto como um relógio, ou outro autômato
(isto é, outra máquina que se mova por si mesma), quando está montado e tem em
si o princípio corporal dos movimentos para os quais foi instituído, com tudo o
que se requer para a sua ação, difere do mesmo relógio, ou outra máquina,
quando está quebrado e o princípio de seu movimento pára de agir 4.
Art. 7. Breve explicação das partes
do corpo e de algumas de suas funções.
Para tornar isso mais inteligível, explicarei, em poucas palavras, a
forma toda de que se compõe a má quina de nosso corpo5. Não
há quem já não saiba que existem em nós um coração, um cérebro, um estômago,
músculos, nervos, artérias, veias e coisas semelhantes; sabe-se também que os
alimentos ingeridos descem ao estômago e às tripas, de onde o seu suco,
correndo para o fígado e para todas as veias, se mistura com o sangue que elas
contêm, aumentando, por esse meio, a sua quantidade6. Aqueles que ouviram
falar, por pouco que seja, da medicina sabem, além disso, como se compõe o
coração e como todo o sangue das veias pode facilmente correr da veia cava para
seu lado direito, e daí passar ao pulmão pelo vaso que denominamos veia
arteriosa, depois retornar do pulmão ao lado esquerdo do coração pelo vaso
denominado artéria venosa7, e, enfim, passar daí para a grande
artéria, cujos ramos se espalham pelo corpo inteiro. E mesmo todos os que não
foram cegados inteiramente pela autoridade dos antigos, e que quiseram abrir os
olhos para examinar a opinião de Harvey no tocante à circulação do sangue8, não
duvidam de que todas as veias e artérias do corpo sejam como regatos por onde o
sangue não pára de correr muito rapidamente, começando seu curso na cavidade
direita do coração pela veia arteriosa, cujos ramos se espalham por todo o
pulmão e se juntam aos da artéria venosa, pelo qual ele passa do pulmão ao lado
esquerdo do coração; depois segue daí para a grande artéria, cujos ramos,
esparsos pelo resto do corpo, se unem aos ramos da veia que levam de novo o
mesmo sangue à cavidade direita do coração, de sorte que essas duas cavidades
são como eclusas, através de cada uma das quais passa todo o sangue em cada
volta que faz pelo corpo. Demais, sabe-se que todos os movimentos dos membros
dependem dos músculos e que estes músculos se opõem uns aos outros, de tal modo
que, quando um deles se encolhe, atrai para si a parte do corpo a que está
ligado, o que provoca ao mesmo tempo o alongamento do músculo que lhe é oposto;
depois, se acontece numa outra vez que este último se encolha, leva o primeiro
a alongar-se e puxa para si a parte a que eles estão ligados. Enfim, sabe-se
que todos esses movimentos dos músculos, assim como todos os sentidos, dependem
dos nervos, que são como pequenos fios ou como pequenos tubos que procedem,
todos, do cérebro, e contêm, como ele, certo ar ou vento muito sutil que
chamamos espíritos animais9.
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