A perspectiva antropológica compreende um
sintoma ou uma síndrome não como uma coisa individual, mas como um estilo de
ser no mundo, uma postura total, e que como tal pode ser encontrado em vários
domínios da atividade humana (para a compreensão do amaneiramento, por exemplo,
Binswanger se remete ao maneirismo enquanto manifestação artística). O sintoma,
enquanto estilo de ser, encontra-se também no normal, ou no doente não
apenas enquanto doente, e essa constatação permite compreender melhor o sentido
da doença. "Quer se trate de uma 'idéia' extravagante, de um ideal ou
'sentimento' extravagante, de um desejo ou plano extravagante, de uma
afirmação, modo de ver ou atitude extravagante, de uma mera 'mania' ou de uma
ação ou de um crime extravagante, aquilo que aqui designamos com a expressão
'extravagante' está condicionado pelo fato de o ser-aí ter se atolado numa
determinada 'ex-periência'". (ibid: 15) A abordagem existencial, portanto,
opera a partir da compreensão do modo como o indivíduo se instalou na
estrutura do ser no mundo.
Binswanger, citando Heidegger, define o ser
no mundo como um "absorver-se atemático -caracterizado pela visão
organizadora dos meios - nos remetimentos constitutivos da disponibilidade do
todo instrumental" (p. 47)7.
O exame clínico, na daseinsanalyse,
busca compreender essa "absorção" própria de cada indivíduo. E a
enfermidade, como já dissemos, se mostra como uma "distorsão" da
estrutura do ser no mundo - embora seja evidente que o modo de ser
"distorcido" também faz parte das possibilidades existenciais da
pre-sença. Tomemos, como exemplo dessa distorsão, o caso da extravagância
enquanto manifestação patológica (Binswanger, 1977: 14 ss.). Ela se se traduz,
existencialmente, por uma desproporção antropológica entre dois modos de ser
inerentes ao ser no mundo, a saber, a amplidão e a altura. Assim
Binswanger caracteriza esses modos de ser: "A 'atração da amplidão', na
direção horizontal da significação, corresponde mais à 'discursividade', ao
experimentar, à travessia e tomada de posse do 'mundo', ao 'alargamento do
horizonte', ao alargamento do discernimento, da visão de conjunto e da
circunvisão organizadora dos meios com relação ao 'burburinho' do 'mundo'
exterior e interior. Já a atração da altura, o subir na direção vertical da
significação, corresponde mais à aspiração de superar a 'gravidade da terra',
de se elevar acima da pressão e da 'angústia das coisas terrenas', mas
ao mesmo tempo também à aspiração de conquistar um ponto de vista 'superior',
uma 'visão superior das coisas', como diz Ibsen, a partir da qual o homem possa
moldar, dominar, numa palavra, apropriar-se de tudo o que
'esperimentou'." (ibid: 17) Amplidão e altura são, portanto,
possibilidades próprias da existência humana. O ser no mundo estravagante,
contudo, deriva de um descompasso entre o subir da altura e a extensão da
amplidão, ele implica que a pre-sença "suba mais alto do que convém
à sua amplidão, ao seu horizonte de experiências e compreensão", (ibid:
15)
Nessa elevação precipitada o ser no mundo
se perde existencialmente, ele "constrói mais alto do que consegue
subir" (ibid: 18). Trata-se de uma "preponderância desproporcional da
altura da decisão sobre a amplidão da 'experiência'." (ibid: 19) A
pre-sença que extravaga desconsidera a "escala da problemática
humana" e se enrasca num determinado "degrau" dessa
escalada, ao qual se lançou em absoluto contraste com "a estreiteza e a
imobilidade do horizonte da experiência" (ibid) E do mesmo modo que o
alpinista que "se enrasca" numa escalada (por faltar-lhe uma visão de
conjunto do despenhadeiro) precisa ser resgatado por outrem, o ser no mundo
extravagante (por falta de "discernimento da estrutura da 'hierarquia' das
possibilidades da existência humana em geral" - p. 21) precisa ser
resgatado desse "entalamento" através da "ajuda" dos
outros. "O que chamamos de tarapia", diz Binswanger, "no fundo,
consiste tão-somente em levar o doente até um ponto em que ele consiga 'ver'
como está constituída a estrutura total da existência humana ou do 'ser no
mundo' e em que ponto dela extravagou. Ou seja: resgatá-lo da extravagância,
trazendo-o de novo 'à terra', que é o único ponto a partir do qual se pode
tentar uma nova partida e uma nova escalada". (ibid: 21)
O essencial a ser observado no exemplo
acima é que as imagens metafóricas da "amplidão" e da
"altura" buscam dar conta da movimentação própria da existência
humana em seu mundo. Como tal, ao menos a princípio, essas imagens são
irredutíveis. Elas dificilmente poderiam ser transpostas, por exemplo, seja
numa linguagem das "tendências" da natureza humana, seja num modelo
de variáveis comportamentais - sob pena de deixaram de expressar aquilo que
pretendiam. O tipo de realidade a que essas noções pretendem referir é
justamente o modo de ser-em da existência humana. Nisto consiste a pesquisa da
"modalidade existencial". Enquanto tal, evidentemente, ela se presta
não apenas à compreensão de fenômenos patológicos, mas da existência humana em
geral.
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