terça-feira, 15 de maio de 2012

O Ser no Mundo em Heidegger - PARTE II


Os vários modos de ser-em da existência humana caracterizam, dessa maneira, a essência do homem, isto é, o fato de ele existir, em sentido próprio. Vejamos quais são esses modos.
Nossa relação primeira com o mundo não se dá por nenhuma forma de conhecimento. Dá-se através do manuseio, do uso, do contato com os entes "que vêm ao encontro dentro do mundo", com instrumentos, e esse modo de ser-em é denominado ocupação (Besorgen). O que Heidegger chama de instrumento não são apenas os objetos que utilizamos para fazer alguma coisa, mas tudo com que nos deparamos em nosso mundo e assume um sentido dentro dele (a lua é também um instrumento para nós). Na verdade, falar em "coisa" aqui não seria adequado ontologicamente, porque a coisa já é derivada de uma atitude de conhecimento da pre-sença, onde "já se recorre implicitamente a uma caracterização ontológica prévia." (ibid: 109) No conhecimento, algo é posto como tema, e a "coisa" é uma entidade tematizada. Já os instrumentos são para nós antes de qualquer visão temática, antes de refletirmos sobre eles, antes de os objetivarmos. A ocupação é, portanto, atemática. Não precisamos "ter consciência" de alguma coisa para dela nos ocuparmos; antes, só podemos ter consciência de alguma coisa a partir de um universo de ocupações. Heidegger exemplifica a multiplicidade dos modos de ocupação: "ter o que fazer com alguma coisa, produzir alguma coisa, tratar e cuidar de alguma coisa, aplicar alguma coisa, fazer desaparecer ou deixar perder-se alguma coisa, empreender, impor, pesquisar, interrogar, considerar, discutir, determinar..." (ibid: 95) Pertencem igualmente à ocupação "os modos deficientes de omitir, descuidar, renunciar, descansar, todos os modos de 'ainda apenas' no tocante às possibilidades da ocupação." E, podemos acrescentar, também a desocupação e o "não fazer nada" são maneiras, existencialmente falando, de ocupar-se.
Mas os instrumentos, as "coisas" de nossa ocupação, nunca "são" isolados, eles integram um todo instrumental (que em última análise é o próprio mundo). Os instrumentos referem-se sempre a outros instrumentos, e o conjunto de todas essas referências é que constitui o meio original do nosso ser no mundo. O que primeiro vem ao encontro no mundo não são os objetos de um quarto, mas o quarto, e não como espaço geométrico, mas como lugar de morada - só a partir deste último é que pode existir o quarto enquanto espaço vazio. E o quarto se encontra numa casa, que se encontra numa cidade, e esta se opõe ao "campo". A partir da multiplicidade de referências do todo instrumental cada instrumento se situa. Assim, dizemos coisas muito diferentes com "o meu quarto" e "um quarto de hotel", embora ambos sejam quartos, porque a primeira expressão está referida à minha intimidade e ao meu "lugar" mais familiar, enquanto a segunda evoca a impessoalidade de um lugar onde se encontra alguém que, ao menos momentaneamente, está sem "lar". Mesmo a natureza, antes de ser a natureza "em si", que a posteriori o homem tematiza como tudo que não é humano, é a princípio integrante do todo instrumental (a iluminação das ruas traz uma referência implícita ao instrumento "escuridão").
Assim, a pre-sença se "absorve", de modo não temático, no todo instrumental. Esta inserção é, existencialmente, a forma mais profunda de conhecimento (lembremos a etimologia latina da palavra "conhecimento": co-nascimento, nascer junto com). Quanto menos se olha "de fora" um instrumento mais se sabe manuseá-lo, e é o uso que primeiramente desvela o instrumento: "O próprio martelar é que descobre o 'manuseio' específico do martelo." (ibid: 111) Não se deve pensar, contudo, que o modo de lidar com os instrumentos, por ser atemático, seja "cego". "Possui seu modo próprio de ver que dirige o manuseio e lhe confere uma segurança específica" (ibid: 11) - por exemplo, a segurança característica de quem domina uma "arte", seja o músico ou o marceneiro. A ocupação se "subordina" à multiplicidade de referências do todo instrumental, e seu modo próprio de ver é "a visão desse subordinar-se", denominada por Heidegger "circunvisão". E o que a circunvisão "vê", de modo originário e necessário, é o seu mundo circundande (Umwelt). 4
Como se vê, embora os termos empregados (ocupação, instrumento) sejam típicos do "homo faber", o modo de ser no mundo da ocupação refere-se a todas as instâncias da existência humana, e a todas as "coisas" que a pre-sença encontra no mundo. Assim, apesar de Heidegger não fazer nenhuma referência significativa à nossa existência corporal, a circunvisão que o corpo próprio dirige ao seu todo instrumental (espacial) está logicamente implicado na análise acima5. E é certo que o homem também se "ocupa" com outros homens, mas este ocupar-se possui um status especial em virtude de ser um modo de relação em que a pre-sença se relaciona com outros entes dotados do modo de ser da pre-sença. O homem "carrega" sempre consigo uma referência a outros homens, o "ser-com" (Mitsein) é um modo de ser básico do ser da pre-sença6. De um modo geral, o ser-em da ocupação caracteriza uma relação homem-mundo que não é simplesmente a de dois seres exteriores um ao outro, mas a de um entrelaçamento ontológico dotado de sentido. Entretanto, o modo da ocupação ainda não é suficiente para caracterizar plenamente o ser no mundo. Outros modos de ser-em apreendem melhor, ontologicamente, a região do ser tematizada empiricamente como "psique" - mas que, por ser uma apreensão ontológica, e no modo do ser no mundo, corrige o caráter substancialista que costuma acompanhar a tematização do "psiquismo". Afinal de contas, a pre-sença não é uma substância, mas um exercício de existir. Vejamos então a disposição e a compreensão.
O "pre" da pre-sença representa sua abertura ao mundo. Mas o ser da pre-sença é justamente sua abertura: "A presença é a sua abertura. "Mas de que modo a pre-sença "se abre" ao mundo? Em primeiro lugar, a partir da "disposição". "O que indicamos ontologicamente com o termo disposição é, onticamente, o mais conhecido e o mais cotidiano, a saber, o humor, o estado de humor." (ibid: 188) Qualquer forma de humor, a simples passagem de um estado de humor para outro, a apatia no humor, todos esses fenômenos que muitas vezes são tidos pela própria pre-sença como insignificantes não são "um nada". Atestam a contínua existência do humor. A disposição é o modo de ser-em com que nos sentimos, nos encontramos, enfim, com que nos dispomos no mundo. Mas não se deve confundir a abertura do ser no mundo no humor "com o que a pre-sença 'simultaneamente' aí conhece, sabe e acredita." (ibid: 190) A abertura da disposição é o solo originário de onde emerge e se desenvolve o que é representado pela pre-sença como emoção e afeto. E essa gênese, evidentemente, não é necessariamente acompanhada (nem mesmo na maior parte das vezes) por um movimento de "consciência". Diz Heidegger: "Também a falta de humor contínua, regular e insípida, que não deve ser confundida com o mau humor, não é um nada, pois, nela, a própria pre-sença se torna enfadonha para si mesma. Nesse mau humor, o ser do pre mostra-se como peso. Por que, não se sabe. E a pre-sença não pode saber, visto que as possibilidades de abertura do conhecimento são restritas se comparadas com a abertura originária dos humores em que a pre-sença se depara com seu ser enquanto pre." (ibid: 188) Aqui se mostra, acreditamos, a direção que deve seguir uma explicitação ontológico-existencial do que é tematizado (talvez na via inversa da gênese do ser) como "inconsciente". Porque a própria abertura com que a pre-sença se depara se lhe aparece como "enigma inexorável", e qualquer "vivência" que uma "reflexão imanente" possa apreender só se torna possível porque o pre já se abriu originariamente. "O 'mero-humor' abre o pre de modo mais originário, embora também o feche de modo ainda mais obstinado do que qualquer não percepção." (ibid: 191)

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