Os vários modos de ser-em da existência
humana caracterizam, dessa maneira, a essência do homem, isto é, o fato de ele existir,
em sentido próprio. Vejamos quais são esses modos.
Nossa relação primeira com o mundo não se
dá por nenhuma forma de conhecimento. Dá-se através do manuseio, do uso, do
contato com os entes "que vêm ao encontro dentro do mundo", com instrumentos,
e esse modo de ser-em é denominado ocupação (Besorgen). O que Heidegger
chama de instrumento não são apenas os objetos que utilizamos para fazer alguma
coisa, mas tudo com que nos deparamos em nosso mundo e assume um sentido dentro
dele (a lua é também um instrumento para nós). Na verdade, falar em
"coisa" aqui não seria adequado ontologicamente, porque a coisa já é
derivada de uma atitude de conhecimento da pre-sença, onde "já se recorre
implicitamente a uma caracterização ontológica prévia." (ibid: 109) No
conhecimento, algo é posto como tema, e a "coisa" é uma entidade
tematizada. Já os instrumentos são para nós antes de qualquer visão temática,
antes de refletirmos sobre eles, antes de os objetivarmos. A ocupação é,
portanto, atemática. Não precisamos "ter consciência" de
alguma coisa para dela nos ocuparmos; antes, só podemos ter consciência de
alguma coisa a partir de um universo de ocupações. Heidegger exemplifica a
multiplicidade dos modos de ocupação: "ter o que fazer com alguma coisa,
produzir alguma coisa, tratar e cuidar de alguma coisa, aplicar alguma coisa,
fazer desaparecer ou deixar perder-se alguma coisa, empreender, impor,
pesquisar, interrogar, considerar, discutir, determinar..." (ibid: 95)
Pertencem igualmente à ocupação "os modos deficientes de omitir, descuidar,
renunciar, descansar, todos os modos de 'ainda apenas' no tocante às
possibilidades da ocupação." E, podemos acrescentar, também a desocupação
e o "não fazer nada" são maneiras, existencialmente falando, de
ocupar-se.
Mas os instrumentos, as "coisas"
de nossa ocupação, nunca "são" isolados, eles integram um todo
instrumental (que em última análise é o próprio mundo). Os instrumentos referem-se
sempre a outros instrumentos, e o conjunto de todas essas referências é que
constitui o meio original do nosso ser no mundo. O que primeiro vem ao encontro
no mundo não são os objetos de um quarto, mas o quarto, e não como espaço
geométrico, mas como lugar de morada - só a partir deste último é que pode
existir o quarto enquanto espaço vazio. E o quarto se encontra numa casa, que
se encontra numa cidade, e esta se opõe ao "campo". A partir da
multiplicidade de referências do todo instrumental cada instrumento se situa.
Assim, dizemos coisas muito diferentes com "o meu quarto" e "um
quarto de hotel", embora ambos sejam quartos, porque a primeira expressão
está referida à minha intimidade e ao meu "lugar" mais
familiar, enquanto a segunda evoca a impessoalidade de um lugar onde se
encontra alguém que, ao menos momentaneamente, está sem "lar". Mesmo
a natureza, antes de ser a natureza "em si", que a posteriori
o homem tematiza como tudo que não é humano, é a princípio integrante do todo
instrumental (a iluminação das ruas traz uma referência implícita ao
instrumento "escuridão").
Assim, a pre-sença se "absorve",
de modo não temático, no todo instrumental. Esta inserção é, existencialmente,
a forma mais profunda de conhecimento (lembremos a etimologia latina da palavra
"conhecimento": co-nascimento, nascer junto com). Quanto menos se
olha "de fora" um instrumento mais se sabe manuseá-lo, e é o uso que
primeiramente desvela o instrumento: "O próprio martelar é que descobre o
'manuseio' específico do martelo." (ibid: 111) Não se deve pensar,
contudo, que o modo de lidar com os instrumentos, por ser atemático, seja
"cego". "Possui seu modo próprio de ver que dirige o manuseio e
lhe confere uma segurança específica" (ibid: 11) - por exemplo, a
segurança característica de quem domina uma "arte", seja o músico ou
o marceneiro. A ocupação se "subordina" à multiplicidade de
referências do todo instrumental, e seu modo próprio de ver é "a visão
desse subordinar-se", denominada por Heidegger "circunvisão". E
o que a circunvisão "vê", de modo originário e necessário, é o seu
mundo circundande (Umwelt). 4
Como se vê, embora os termos empregados
(ocupação, instrumento) sejam típicos do "homo faber", o modo de ser
no mundo da ocupação refere-se a todas as instâncias da existência humana, e a
todas as "coisas" que a pre-sença encontra no mundo. Assim, apesar de
Heidegger não fazer nenhuma referência significativa à nossa existência
corporal, a circunvisão que o corpo próprio dirige ao seu todo instrumental
(espacial) está logicamente implicado na análise acima5.
E é certo que o homem também se "ocupa" com outros homens, mas este
ocupar-se possui um status especial em virtude de ser um modo de relação
em que a pre-sença se relaciona com outros entes dotados do modo de ser da
pre-sença. O homem "carrega" sempre consigo uma referência a
outros homens, o "ser-com" (Mitsein) é um modo de ser básico
do ser da pre-sença6.
De um modo geral, o ser-em da ocupação caracteriza uma relação homem-mundo que
não é simplesmente a de dois seres exteriores um ao outro, mas a de um
entrelaçamento ontológico dotado de sentido. Entretanto, o modo da ocupação
ainda não é suficiente para caracterizar plenamente o ser no mundo. Outros
modos de ser-em apreendem melhor, ontologicamente, a região do ser tematizada
empiricamente como "psique" - mas que, por ser uma apreensão
ontológica, e no modo do ser no mundo, corrige o caráter substancialista que
costuma acompanhar a tematização do "psiquismo". Afinal de contas, a
pre-sença não é uma substância, mas um exercício de existir. Vejamos então a
disposição e a compreensão.
O "pre" da pre-sença representa
sua abertura ao mundo. Mas o ser da pre-sença é justamente sua abertura: "A
presença é a sua abertura. "Mas de que modo a pre-sença "se
abre" ao mundo? Em primeiro lugar, a partir da "disposição".
"O que indicamos ontologicamente com o termo disposição é, onticamente,
o mais conhecido e o mais cotidiano, a saber, o humor, o estado de humor."
(ibid: 188) Qualquer forma de humor, a simples passagem de um estado de humor
para outro, a apatia no humor, todos esses fenômenos que muitas vezes são tidos
pela própria pre-sença como insignificantes não são "um nada".
Atestam a contínua existência do humor. A disposição é o modo de ser-em com que
nos sentimos, nos encontramos, enfim, com que nos dispomos no mundo. Mas
não se deve confundir a abertura do ser no mundo no humor "com o que a
pre-sença 'simultaneamente' aí conhece, sabe e acredita." (ibid: 190) A
abertura da disposição é o solo originário de onde emerge e se desenvolve o que
é representado pela pre-sença como emoção e afeto. E essa gênese,
evidentemente, não é necessariamente acompanhada (nem mesmo na maior parte das
vezes) por um movimento de "consciência". Diz Heidegger: "Também
a falta de humor contínua, regular e insípida, que não deve ser confundida com
o mau humor, não é um nada, pois, nela, a própria pre-sença se torna enfadonha
para si mesma. Nesse mau humor, o ser do pre mostra-se como peso. Por que, não
se sabe. E a pre-sença não pode saber, visto que as possibilidades de abertura
do conhecimento são restritas se comparadas com a abertura originária dos
humores em que a pre-sença se depara com seu ser enquanto pre." (ibid:
188) Aqui se mostra, acreditamos, a direção que deve seguir uma explicitação
ontológico-existencial do que é tematizado (talvez na via inversa da gênese do
ser) como "inconsciente". Porque a própria abertura com que a
pre-sença se depara se lhe aparece como "enigma inexorável", e
qualquer "vivência" que uma "reflexão imanente" possa
apreender só se torna possível porque o pre já se abriu originariamente.
"O 'mero-humor' abre o pre de modo mais originário, embora também o feche
de modo ainda mais obstinado do que qualquer não percepção." (ibid:
191)
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